terça-feira, 20 de outubro de 2009

RetroAcesso

A porta se fechou e lá estava ele, molhado, plácido, desfeito. O tempo parou de passar. Às nove e meia em ponto ele decidiu o que fazer. Passou a tarde inteira vendo televisão e fomentando seu desligamento do mundo exterior. Ao meio-dia saiu para o almoço e decidiu nunca mais voltar àquele emprego cretino, que alimentava uma máquina estúpida. No meio do expediente a ficha pareceu cair - aquelas criaturas todas, aqueles sorrisinhos passionais, aquelas caras de quem dorme pouco e está pouco se lixando para toda aquela merda, mas tem que ligar o foda-se e bater o ponto e puxar o saco do chefe quando lembra da mulher, professora, com cinco doenças diferentes e três pesadelos por noite. Quando vê o filho tão satisfeito por causa das aulas de futebol depois da escola. Quando vê um aglomerado de envelopes na mesa e pensa que aquela merda é que vai pagar por eles. Quando pensa que a Unimed é quem vai pagar. Sua vida não poderia ser uma vidinha, pelo amor de Deus. Pela manhã chegou três minutos atrasado no trabalho, e foi vítima de olhares tortos e piadinhas tão infelizes quanto inevitáveis. Que gente mais otária, pensou. E ficou realmente incomodado com a situação. Começou a observar as pessoas. Um bando de ratos de porão, sugadores de carniça, desocupados. Entendeu o sonho. Tomou café pensando em tudo que tinha feito em nome da estabilidade do emprego público. Pensou no cursinho, nas noites sem dormir. Menos uma preocupação, comentou com o pão antes de devorá-lo. À noite sonhou com ratos de porão, centenas deles, subindo por seus braços e suas pernas, enquanto ele assistia inerte a tudo aquilo. Quando viu na internet que havia passado, levantou as mãos para o céu e gritou a plenos pulmões: Graças a Deus! Fez uma festa para os amigos e cortou o cabelo. Agora as coisas iriam funcionar - meio horário, dinheirinho no bolso, vida ganha. Estava descrente com o trabalho e inseguro pela pressão gratuita e cada vez mais gananciosa exercida pela iniciativa privada. He worked his ass off e nem assim tinha certeza do dia de amanhã. Um concurso era a única solução. Formou-se no tempo certo, mas nunca foi brilhante. Tinha boas idéias, mas não para o meio acadêmico. Sempre achou meio babaca essa história de rótulos e citações de boca cheia e cabeça oca. Terminou o segundo grau decidido a fazer algo que pouca gente fazia, mas descobriu que nem mesmo ele poderia fazer aquilo e ingressou em um novo curso. Estudou em boas escolas, todas particulares, e achou que tinha jeito para as artes quando fez teatro no colégio. Aos dez anos tomou uma bolada na cara e desistiu de ser goleiro. Aos sete anos começou a jogar futebol e dizia pra todo mundo que ainda seria o goleiro titular da seleção. Aprendeu a falar antes da hora, aprendeu a andar bem depois. Quando nasceu, sua mãe disse: podem escrever - esse menino veio ao mundo pra fazer a diferença!

2 comentários: