segunda-feira, 22 de julho de 2019

Passe

Para quem não sabe, aplicar passes é muito mais simples do que se imagina. Basta fazer um curso (no centro em que frequento esse curso durou um final de semana somente) e ter boa vontade e disponibilidade para integrar uma das equipes da casa. Pede-se que o passista se prepare no dia do passe e no anterior, evitando a ingestão de bebida alcoólica e também carne vermelha. No dia do passe, é importante que o passista esteja bem disposto e tranquilo, a fim de se doar à tarefa. É uma tarefa bonita, nobre, porque servimos de canal para que a energia divina chegue até as pessoas que adentram a sala em busca de luz. Como integro a equipe que aplica passes nas reuniões de tratamento, tenho a oportunidade de ver muitas figurinhas carimbadas, pessoas que vão semanalmente ao centro, que sentam-se sob uma luz azul e, completamente desarmadas, fecham os olhos e confiam na energia que recebem, emanada de mãos dedicadas e prontas a servir. Seria maravilhoso se esses trabalhadores estivessem sempre tranquilos e preparados. A questão é que somos humanos, e, como tal, passíveis de dias ruins, de fases complicadas, noites mal dormidas, dilemas e questões de todo tipo. Reconhecemos a importância da preparação, da meditação, da sublimação do que anda estranho ou errado, mas a angústia paralisa, o medo afoba. Tem dias em que é o passista quem precisa de um passe longo, poderoso, cheio de luz que não se apaga, calor que não se dissipa - passe que não passa. Compreendemos que nossa existência, única em nome e endereço, não passa de uma passagem; crucial, contudo, é passearmos por ela com mais paciência, repassarmos as páginas borradas a limpo, passarinharmos por nossa bela essência. Nessa luta por mais ciência e mais aprendizado, a humildade pede coração apurado, e a gratidão só é sincera quando atribuímos valor ao nosso passe. Os dissabores passam, como passam também dias de sol. Que possamos sorver com sabedoria cada sopro de vida destinado a passar por nós.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Morava

Não fomos morar juntos - eu fui morar com você. Na sua casa. Com as suas coisas. As suas regras. Seu tempo e espaço. Cheguei com uma meia dúzia de malas, muitos livros e alguns velhos cadernos que uso pra rascunhar passos certos e errados. Minha vida sacudia dentro de uma camioneta, como se em quase meio século de existência eu só tivesse aquilo ali - roupas, livros, cacarecos de estimação, um lugar pra estudar, um pra ler, uns pra guardar as coisas. Enfeite não podia - não me cabia naquela vida que há tanto você montara. Uma geladeira nova, microondas, televisão vieram pedindo licença. Pra me caber na sua vida te assisti, bem sem querer, abrir mão de uma TV, um móvel antigo e duas cadeiras que não combinavam com você. Valia a pena o sacrifício só pra ter alguém dividindo as contas, regando as plantas e arrumando a casa compulsivamente? Ah, é. Tem o amor. Por amor, vontade de dar certo, foi-se embora a TV do quarto, maior arrependimento. Do lado de cá, se foi uma casa pronta, vida sossegada com vista pro mato, carro quitado, sonho de ser mãe, dinheiros e dinheiros, gratidão por estar viva, saudável e com a faca e o queijo na mão pra mudar tudo isso. Fui caminhando e tirando dos bolsos porções gordas de amor próprio pra ficar amor somente, aquele sofrido que vem com resiliência, humildade, paciência e dor do dedinho do pé até o fio mais arrepiado do cabelo. Tenho certeza que a vida é muito maior do que isso que eu sinto agora, essa síndrome do passarinho sem ninho que me arrebata a cada cinco minutos, mas preciso dizer que a coisa mais difícil é perceber-se ganhando quando ao seu redor tudo insiste em te convencer que você está de fato perdendo. Estranhamente estranho, contudo, é sentir dentro de mim uma força enorme, explosiva, que nem aqueles clipes do Chemical Brothers em que a batida invade o corpo e a alma das pessoas, toma o controle. Difícil explicar, mas é como se muita gente estivesse ao meu redor e decidissem todos me carregar, que agora eu estou cansada mas até que sou gente boa, então bora quebrar o galho dessa moça, bora levar ela pra rua, bora pedir pra melhor amiga ligar e chamar pra uma volta de bicicleta, bora criar desculpas pra ela sair de Belo Horizonte, sair do país, sair de casa num dia frio pra tomar açaí na Almeida, bora carregá-la pra atravessarmos com ela no colo essa areia movediça, bora dar tanto amor pra essa menina que ela vai perder o medo e a vergonha de amar daquele jeito de amor somente, aquele sofrido que vem com resiliência, humildade, paciência e dor do dedinho do pé até o fio mais arrepiado do cabelo - e emoção também, uma emoção tão grande que eu fico até sem graça de sentir. Uma batida que nem a do Chemical Brothers, que tira a gente pra dançar. Puta merda, Jesus, véi! Filho de Deus, vá lá... Mas esse seu escrever certo por linhas tortas, essa matemática louca pra me explicar que o morava me preparou para morar em minha própria pele, dentro e fora de mim... Nu! Você é foda. Valeu, mano. Tamo junto.