terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Sense and sensibility

 O grito... o grito persiste, meio rouco, meio alucinado, reacionário sem revolução. Chove pelos olhos, janelas da alma, sai em marimbondos, palavras ferrenhas, pela boca que cansou de bendizer. Quem foi que disse que seria fácil assistir de camarote aos nossos desencontros de credo, raça, raiz, de plástico ou de borracha, de pai e mãe e aquele manual de como não ter medo do escuro, como fazer mais amigos, como suportar... Ai que suportar ferroa, arde, e a gente sai zombeteando pelo escuro incerto, pensando em que momento o sol vai nascer e trazer com ele a paz – a igualdade – a justiça – o entendimento – a calma, o dom inestimável da resignação. Acho que no momento da multiplicação das lições de vida, algumas palavras se perderam num sopro (aquelas que amansam, amaciam), e o que sobrou ficou meio duro, puro desalento. Pela janela indiscreta do pensamento passam cobras e lagartos a todo momento – provas da sua pouca fé. Sim, porque hoje começou com intempéries, turbulências, desventuras em série e vai terminar com cansaço bom, senso de propósito, fichas caindo como sementes maduras em solo fértil, arado demais. O afeto... o afeto me persegue como Pepe Le Pew, me encontra nos recônditos das minhas bad vibes e revira tudo, sacode, abre a janela, me traz um café. Olho para as fotos que me cercam enquanto escrevo essas linhas e digo pra mim mesma: não sei, não consigo, não entendo, mas hoje é preciso gritar que o afeto venceu. 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

The Chosen

 Experimente dar uns passos para trás e procurar, nos recônditos da sua lembrança, por mergulhos e flashes. Verá que os lapsos da sua memória não te impedem de trazer ao palco fragmentos de vida incandescentes, sopros de verdades, dores, escolhas equivocadas, palavras e atos que por um triz não mais te representam, que por um triz ainda te condenam. Enquanto a festa passou você assistiu da janela, e teve tempo pra pensar se de fato algum dia foi bom estar ali embaixo, ao sol, pela chuva, ao relento, imersa numa fragilidade que precisava te habitar pra você se convencer que também queria ser mulher, anjo, boneca, princesa, criança. Mergulhe no mar profundo da tristeza e experimente tirar de lá uma criança. Veja sua cara estampada pelo álbum de retratos, em verde, azul, vermelho e branco, repare nas companhias. Você passou muito tempo sozinha, desde cedo confabulando com seus botões. Criava explicações para sobreviver em um mundo onde suas palavras não tinham voz. Você cresceu e entendeu a constante repulsa pela palavra sobreviver - é pequeno e solitário demais. 

Tente se lembrar da primeira vez em que te traíram, tiraram sua esperança; de um tesouro que você possa ter guardado com esforço e dedicação porque acreditava que era precisamente isso que te tornaria, aos olhos do mundo, especial. Uma figurinha, um papel de carta perfumado, um lápis brilhante, um diário sem erros de português, cartas de gente que um dia esteve ali, de gente para quem eu supus estar um dia, uma teoria, uma hipótese, uma paranóia, um pedaço de sozinhez com imcompreensão. Se você olhar pra trás com óculos perscrutadores e instinto felino, vai ver que riu, chorou, bebeu e falou alto, que trovejou, relampeou, chutou a porta e catou a maçaneta sem revolta aparente, sem ingenuidade e sem vontade alguma de sair daquela água fria e densa, pegar uma toalha e sentar perto de quem quer que fosse e despejar por ouvidos sonolentos uma explicação conveniente. 

... e em todas as esquinas do caminho você trombou com Deus. Em todos os passos estranhos da criança ferida no meio da chuva era um vento, um desenho no céu, um assombro, uma emoção de menina sozinha, sem ninguém pra conversar, pra entender. A menina que quis colecionar amigos como a Moranguinho, que achava sua casa o lugar mais triste do mundo... a menina que só não queria mais se sentir tão inadequada, brilhando no claro. Um dia ela saiu pelas ruas escuras do seu pensamento e decidiu que não iria voltar pra lugar nenhum. As pessoas iam e vinham, temporárias que só elas, cumprindo seu papel. O peito ainda dói - de angústia pela falta de respostas - e as pessoas ainda passam como patos pelo seu daydream, algumas querendo genuinamente - não sei se por curiosidade ou estima - se demorar um pouco mais. 

Isso é tudo pra dizer que de meu fortuito encontro com quem me protege e guia nesse plano, surgiram presenças mágicas iluminando as ruas escuras do meu pensamento com flashes de propósito. Escrevi um livro sobre a falta de amor que eu sentia e ele agora está sendo contado por aí em tom de boa conversa. Esvaziei meu saco de traumas ao longo de uma história encantada, e de presente me fizeram uma boneca sem boca que fala de um jeito que todo mundo deveria saber. Sei que fui escolhida para vencer essas pequenices todas, essa mania de não saber pedir, essa fé em castelos de papel, esse medo de perder mesmo sabendo que tudo é transitório e que nada me faltará. Sou Mateus, sou Maria Madalena, sou Judas, sou Simão Pedro - sou a filha tão grata quanto humana, meu mergulho mais difícil, meu próprio feixe de luz sob as águas turvas do meu viver... um pot-pourri bitter-sweet de bits and pieces.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Ondina

 A vida nos explica muitas coisas de várias maneiras. De algum jeito que eu não conseguiria jamais precisar, entendi que sou musical. Poderia ter me dedicado mais, poderia ter me tornado melhor em algum sopro dessa saga - e poderia ter feito milhares de outras coisas que me fariam rir ou chorar, ganhar dinheiro ou mais sorrisos sinceros, pisadas mais firmes... Pra abrandar meu desalento e eufemizar meu TOC cada vez que uma nota destoa, criei uma estratégia: digo pra mim mesma "Esse não é meu meio de vida". E passa. Na minha primeira vez batucando no carnaval, um sujeito estacionou do meu lado e disse que vinha me reparando, analisando meu jeito de tocar. Concluiu que me faltava energia. Muitas ondas se passaram, a oferenda já se perdeu no mar. Aquelas sete ondas que a gente pula são na verdade dezoito, vinte e duas, milhares, cada uma levando pra longe as pessoas, as histórias que pensamos morar em nós até nosso HD nos trair. A seletividade da memória, a transitoriedade dos momentos, a experimentação de sentimentos como a dor, a paixão, o júbilo, a desesperança, nada disso parece calculado - mas o que fica carrega o propósito de nos ver crescer. A confiança se emoldura por escolhas que te priorizem, que te incluam. Por isso, com alegria ou sem energia, ainda me visto com capricho, pego meu tarol e vou em busca de um batuque que me aqueça, que me represente; pego meu caderno, meu ukulele e vou arranhando notas sôfregas, infinitas como as estrelas, sinceras como tudo que se sente. Hoje, em meio a esmaltes e acetona, Lourdinha me perguntou onde os extraterrestres moravam. Uai, Lourdinha, em outros planetas! Que planetas?, ela retrucou. Tem mais planeta? Tem muita coisa se você quiser saber... Minha sobrinha Cecília e a amiga Helena organizaram outro dia toda uma caça aos ursos no parquinho do prédio - foram a pé pro Polo Norte. Conhecer faz a gente imaginar, e imaginar faz a gente querer descobrir o mundo e tudo que faz ele ser o menos óbvio possível. Somos passíveis de erros, de falhas, cometemos gafes, falamos bobagem e é isso aí. Passa - o medo, o desconforto, a dúvida, a ansiedade, tudo passa se você acredita que o mar leva, que o mar traz, que a onda certa se chama AGORA, que não tem reza nem mantra pra pular o que tiver que aparecer. Olho em vonta e sinto-me obrigada a ser grata pelas flores que encobrem os espinhos da minha alma. Resolvi nadar sem boia e sem salva-vidas... e descobri a graça de saber boiar - em mar sereno, em mar bravio; em lagoa calma, em rio, em piscina de sonhos verdes e luzes escondidas.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Princess Toadstool

 Era um sábado qualquer. Havia recebido um convite para correr com uma amiga bem cedo, mas acordei depois do horário e decidi que iria - pela primeira vez - dar a volta na lagoa da Pampulha correndo. Meu máximo havia sido 14 quilômetros em condições de tempo e espaço muito favoráveis. Parada há mais de dois meses devido a uma lesão no joelho e recém-saída da fisioterapia, não saberia dizer a vocês o que me levou a resolver tão firmemente dentro de mim que aquele seria o dia em que eu faria aquilo, e que daria o meu sangue independente das condições porque sou capricorniana - e porque sou eu. Falei pro meu namorado e ele simplesmente respondeu: Bora - vou com você de bicicleta. Ontem, assistindo a Nyad, filme profundo e sensível, esse dia brilhou na minha memória. A história envolve (sem spoiler) três premissas básicas: 1. nunca desista; 2. nunca é tarde para realizar seus sonhos; 3. it takes a team.

Chegamos às 13:30, e ele alugou a maior bicicleta disponível – o que, pra um cara de dois metros e dez, não passava de uma Caloi Ceci. Sol, calor, zero preparo – esse era o cenário. Quem corre sabe que a gente tem uns momentos de transe - sem eles acho que não daria pra percorrer tamanhas distâncias só com a força das pernas e a persistência dos pés. Quem manda, de fato, é a cabeça. Passava momentos meditativos duradouros e, a cada despertar, olhava pro lado e lá estava ele, com uma mochila nas costas cheia de coisas minhas, suando como uma chaleira e com cara de tudo certo. Lembro de pensar “é isso mesmo? É normal? Eu mereço?” enquanto sentimentos diversos iam tomando forma aqui dentro.

Com treze quilômetros, fui tomada pelo cansaço. Fiquei sem ar, o calor me afetava, as pernas doíam... meu corpo inteiro queria desistir. Pensamentos como "parabéns, você chegou até aqui", "está calor, não é culpa sua", "você fez o seu melhor", "ninguém está te cobrando isso", "você nem se preparou mesmo" foram inundando minha cabeça. Parei sem fôlego e saiu da minha boca: "não aguento mais". Aquele cara gigante, ensopado e dolorido por pedalar uma bicicletinha por mais de uma hora no sol com uma mochila nas costas cheia de coisas minhas, me pediu pra respirar e me disse: "você consegue. Se precisar, paramos a cada quilômetro até chegarmos lá. Falta muito pouco, força!" e eu olhei pra frente e voltei a correr. Não parei mais até o final dos 18 quilômetros. Até hoje rimos ao lembrar que não conseguimos nem tirar uma foto, de tão flabbergasted que eu estava (essa é a palavra, a sensação não cabe no português).

Nyad me tocou duplamente por trazer dois temas importantes - o poder da parceria e o impacto do abuso. Engraçado como de poucos dias pra cá vi três filmes retratando abuso sexual - e em dois deles, diferente do "padrão" (ou fato inegável), foram apresentadas situações de estupro que ainda confundem muitas mulheres: momentos em que, por qualquer motivo, elas disseram não e a outra parte da dupla decidiu que sim. Muitas de nós ainda não entenderam que foram abusadas - e pelo visto muitos homens também. Muito duro, e infelizmente comum, é o abuso por parte de maridos, namorados, parceiros, pessoas próximas, com quem você divide a cama, a casa, os fatos corriqueiros de todo dia - pessoas que, em suas cabeças doentes, ligam a intimidade que conquistaram ao direito de satisfazerem seus instintos quando e como lhes convier. Digo por mim que isso dói mais que ferida aberta, porque a gente se sente suja e traída e impotente e não digna de um amor de verdade, de um sonho que vale a pena ser realizado, de uma vida plena, com cachorro, planta e muita história linda. A gente faz terapia, reza, corre atrás da mais-valia, do autoamor, e ao primeiro não já sente um gosto doce na boca, de que lutar por você está, devagar e sempre, fazendo a diferença. It takes a team pra acabar com o Bowser e libertar a princesa, mas volta e meia o medo volta – ela ainda se lembra.

Entender que uma pessoa vai acordar num sábado quente, pegar uma mochila, atravessar a cidade e passar duas horas no sol em cima de uma bicicleta com cara de velocípede só pra te acompanhar, pra te cuidar e te ajudar a se superar, pra ser bem sincera, ainda é intrigante - cheira a banco de carro zero, aquela alegria quase entorpecente. Que o que fomos e o que um dia vivemos nos traga um senso de gratidão, porque cada linha torta desse livro direcionou o curso do seu rio, alongou suas pernas e braços, fortaleceu sua mente pra que você pudesse, mais uma vez, nadar - para o melhor lado do rio - porque você pode - porque você merece - porque um filme no Neflix pode abrir as portas e janelas da sua alma para o que existir de mais bonito e mais verdadeiro. Deixa o sol entrar... Voa!

segunda-feira, 31 de julho de 2023

...pediu um café à João Gilberto

Era perto das três da tarde e eu equilibrava papéis e livros a passos largos, em direção ao meu carro; na contramão, duas moças nos seus vinte e poucos anos puxavam inconscientemente a mochila junto às costas enquanto travavam uma conversação interessante pelo caminho estreito que àquela hora dividíamos. Meu pensar piscava aturdido por confusões de todo tipo, mas nenhuma delas impediu que minha antena captasse, naquele pequeno momento em que nos apertamos para caber naquele caminho, uma onda de palavras que se quebrou sobre os meus ouvidos: ... a gente sentou e ele pediu um café à João Gilberto... Assim. Uma onda. Quebrando pelo meu casco endurecido de vivicionices capricornianescas, planilhas em word riscadas a lápis. Criei uma imagem de um casal que sai junto pela primeira vez e me vieram as emoções do primeiro encontro, as inseguranças, os traumas e as expectativas, o que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta - e o que tudo isso que se seleciona ilustra o medo que temos de nós. Nesse meu devaneio mais sistêmico que sistemático vi o moço chamando a garçonete timidamente com um breve aceno, seus movimentos leves e coordenados, seu olhar tranquilo a maquiar uma breve ansiedade, a esconder uma rabugice teimosa quando lhe passava pela cabeça a possibilidade de tocar distraído uma nota errada... de desafinar. À medida em que a atendente se aproximava, ele ensaiava mentalmente os passos e compassos, os sis e os fás, um dó desenganado. Pelo bloquinho de anotações foram-se desenhando os detalhes do pedido em notas suaves, tom melancólico e incerto de quem não sabe ainda em que momento daquela história uma daquelas mãos sobre a mesa abraçaria a outra - em que momento ele por fim entenderia que a perfeição encobre a essência, e é essa mesma essência, com seus encantos e desatinos, que sintoniza cada par de corações desafinados, roucos, uivantes, estelares. A vida é cheia de personagens marcantes, e de tanto viver e querer achar um sentido, uma tribo, um ouvido, seguimos o caminho dos outros, ouvimos essa e aquela conversa, represamos a onda que passa numa piscina cheia de água que não é nossa, que ensina, que purifica mas que não nos pertence nem define - que não nos simplifica nem adoça. Engessamos nossa existência enquanto assistimos por uma janela embaçada os desafinos alheios que a gente endossa, fracassos que nosso olhar hipermétrope transforma em receitas de sucesso instantâneas, espinhos que a gente quer porque quer que sejam rosas. Às vezes me lembro daquelas meninas cruzando meu caminho estreito, daquelas palavras soltas que ecoaram pela minha alma e despertaram as reflexões que hoje compartilho, e penso que possivelmente o que se passou nada tem a ver com aquela cena criada pela minha imaginação; que em algum canto desse mundo pode existir um café à João Gilberto, cujo sabor é tímido e perfeccionista como ele próprio. Mas quer saber?  O que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta -  tudo isso que se seleciona só ilustra o medo que temos de nós. Hoje pedi um café à João Gilberto e cada gole quente, amargo e perfumado acordou em mim a lembrança de que somos todos desafinados com corações batendo no fundo do peito, pulsando um querer feroz.  

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Columbine

 Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas. Na minha vida o principal meio de emancipação de mim mesma, dos meus antepassados que fracassaram no amor e em outras drogas, foi o conhecimento - consciência de que os erros fortalecem, que saber ler as entrelinhas é a chave pra compreender o todo, que a humildade é a mãe da sabedoria, da prosperidade, da mais-valia, de tudo que importa, que a esperança derrete a pedra que cristalizou o sofrer do coração da gente. Conhecimento de causa, de matéria, de energia, de caminho, de verdade, de propósito, de argumento, de sentimento, de anseio e de glória - conhecimento do que vem a ser a fé, o meu problema, o problema do outro, o que está sob meu controle e o que foge dele e não pode, por isso, me descabelar. Li há pouco tempo dois livros de uma autora que ganhou o Nobel de literatura em 2022 pelo conjunto da obra - infeliz coincidência, já que o primeiro foi tão desagradável que passei dias arrotando aquelas linhas indigestas. O segundo foi melhorzinho, mas, como minha leitura dos franceses, blazé: sem emoção. Fiquei atordoada com o fato de uma pessoa que discorre sobre um aborto na juventude com frieza ártica disfarçada de naturalidade/autonomia/independência/maturidade (pelo amor de Deus chega) não só concorrer mas ganhar o maior prêmio mundial atribuído a um escritor. E não estou falando aqui de culpa cristã nem da minha opinião sobre o ato em si; estou problematizando uma tentativa - a meu ver muitíssimo frustrada - de naturalizar uma situação banalizando-a, trivializando o que não tem absolutamente uma vírgula de trivial. Em minhas palestras espíritas, falava sempre do orgulho e da vaidade como os maiores vilões da humanidade, e ao ser desmentida e acusada téte-a-téte em nome de Jesus, fico pensando que não reagir negativamente, não querer que a pessoa pague, se ferre, se estrepe é tarefa pra santo, e santo nenhum está preparado pra habitar esta terra. Viver é foda, morrer dá medo e ser atacado no meio do caminho é tudo que eu rezo pra não me acontecer desde que fui de fato atacada a mão armada dentro de um ônibus de viagem (voltando de um enterro), dentro de um restaurante e, menos de vinte e quatro horas depois, dentro de um shopping. Éééééééé... o inferno é aqui. Hoje meus alunos apareceram ressabiados, com medo de um grupo de Tik-Tokers ameaçando promover ataques em escolas, pagando de avengers de Columbine - falácia + ócio + falta de empatia + bebida + droga + sexo barato e zero pista de onde vêm o pânico, a ansiedade, a depressão, o surto a cada nota baixa, cada plano frustrado, cada advertência, cada não. Conhecimento é controle; vitimização é conforto. O que me cabe é acompanhar de longe essa fila de patos sem mãe engrossando a homogeneidade ideológica, o maria-vai-com-as-outrismo, o coitadismo, a histeria coletiva. Se eu não trabalhasse, não tinha dinheiro pra estudar; pra comer; pra fumar meu cigarro, tomar minha cerveja, me embriagar de experiências que me afrontam, me confrontam e me impulsionam pra fora da bolha de mediocridade que quis, lá atrás, me abocanhar. O que as pessoas hoje fazem pelo determinismo, comunismo, egocentrismo, vitimismo, conformismo, até pelo (pseudo)altruísmo é nocivo demais - e demais é muito mais, é excesso, é sufocante... insuportável. Talvez por isso uma autora que narra tão casualmente o processo de transar sem proteção-descobrir uma coisa dentro do corpo-procurar meios para se livrar dessa coisa e ganha o Nobel de literatura seja a ilustração perfeita do que melhor representa o sucesso em nossos dias, porque profundidade dói e machuca na mesma proporção - profundidade é que nem bolsa de grife: custa caro e ninguém quer pagar, mas é fácil imitar, fácil blefar que tem. Talvez o melhor mesmo seja não acreditar em nada, seguir correndo com sapatos desamarrados pela chuva fina, cabelo grudando no rosto, roupa pesando o corpo, água salgando os olhos que pouco enxergam porque decidiram que, afinal, enxergar é só uma questão de perspectiva; que, no final, um pouco de positividade tóxica é a lente rosa que faltava pra fingir que o que a gente sente ou pensa na verdade pouco importa. Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Sonharte

 Sonhos são muito mais que devaneios. São goles de expectativa por uma vida no mínimo menos ordinária, cercada pelo amor de nossos pais, de nossos cães. Já cheguei a pensar que sonhos nada mais são do que uma projeção de nossa amargura. Hoje quero crer que eles nos fazem inclusive acessar nossa parte adormecida, aquela que quer uma vida de outra vida, outra natureza, outra interseção que não seja divina - ao menos para que Deus tenha certo apreço por nós.