quinta-feira, 31 de março de 2011

Peter Pan

Deitado na areia quente da praia. Era assim que eu estava quando vi aquele pedaço de mal caminho. Cabelo curto balançando ao vento, biquíni meio anos setenta, um corpo de dar água na boca. Meus sensores acusaram na hora: era amor à primeira vista. Digo isso porque meu coração foi a duzentos por hora com aquele jeitinho dela de chutar a água. E o sorriso? Não havia nada igual... Ela tinha uma covinha do lado direito e ria sozinha ao pensar em qualquer coisa engraçada. Estava  distraída, ouvindo música, curtindo a solidão dos seres mágicos à beira do mar. Tinha olhos doces, e suas mãos entregavam uma vida de possíveis pequenos luxos - unhas feitas, dedos finos como os de uma pianista. Ela poderia seguramente ser uma professora, poeta, cantora de músicas que se canta baixinho, ao pé do ouvido. Ela poderia ser qualquer coisa que quisesse, mas naquele momento era somente a garota mais bonita que já me  havia aparecido; não me ocorria outra coisa senão olhar pra ela. Era isso - iria ficar ali pelo tempo que fosse, só para vê-la ir e vir.

Não demorou muito para que um sujeito grandalhão, meio desengonçado e consideravelmente acima do peso se aproximasse. Sentou-se ao seu lado com certa intimidade, e percebi que toda ela murchou de repente. Tirou os fones de ouvido e pôs-se a olhar o mar, absorta em seus próprios pensamentos. O sujeito falava muito, gesticulava bastante, ao que ela não mostrava sinal algum de descrença, mágoa ou contentamento. Senti que ela queria apenas ficar ali por alguns instantes mais, ouvindo o que as ondas iriam dizer. Talvez elas dissessem que aquela garota bonita deveria olhar para trás e me ver, que seus olhos doces deveriam encontrar os meus; depois, vai saber... 

Como num conto de fadas ela olhou para trás, e me viu boquiaberto a encará-la sem querer, sem poder, sem saber se era certo. Quando ela se levantou, senti um aperto no peito, e por um segundo pensei em erguer-me num salto e correr para bem longe - já era tarde. Com o frescor da juventude a embalar-lhe o passo, ela aproximou-se devagar. Antes que dissesse alguma coisa, decidi começar:

Você é a mulher mais bonita que eu já vi e eu quero me casar com você.

Ela me olhou com surpresa antes de me olhar com ternura. Logo respondeu:

Ah, que gracinha... Fala isso praquele cara ali, porque ele já se casou comigo e não parece muito satisfeito, não. Mas acho que se você pegar a bola de tênis que está na boca do seu cachorro e me entregar, ele vai ficar bem mais feliz.

Ela afagou meus cabelos e despediu-se com o mais belo sorriso.  Como é que pode um camarada com uma mulher daquelas pensando em bola de tênis? Naquele momento, soube que a vida adulta me levaria a dois caminhos - seria o rei da rua... ou mais um ser humano patético a integrar o tenebroso universo masculino. Decidi voltar ao video game e não pensar mais nisso.


Peter Pan

Deitado na areia quente da praia. Era assim que eu estava quando vi aquele pedaço de mal caminho. Cabelo curto balançando ao vento, biquíni meio anos setenta, um corpo de dar água na boca. Meus sensores acusaram na hora: era amor à primeira vista. Digo isso porque meu coração foi a duzentos por hora com aquele jeitinho dela de chutar a água. E o sorriso? Não havia nada igual... Ela tinha uma covinha do lado direito e ria sozinha ao pensar em qualquer coisa engraçada. Estava  distraída, ouvindo música, curtindo a solidão dos seres mágicos à beira do mar. Tinha olhos doces, e suas mãos entregavam uma vida de possíveis pequenos luxos - unhas feitas, dedos finos como os de uma pianista. Ela poderia seguramente ser uma professora, poeta, cantora de músicas que se canta baixinho, ao pé do ouvido. Ela poderia ser qualquer coisa que quisesse, mas naquele momento era somente a garota mais bonita que já me  havia aparecido; não me ocorria outra coisa senão olhar pra ela. Era isso - iria ficar ali pelo tempo que fosse, só para vê-la ir e vir.

Não demorou muito para que um sujeito grandalhão, meio desengonçado e consideravelmente acima do peso se aproximasse. Sentou-se ao seu lado com certa intimidade, e percebi que toda ela murchou de repente. Tirou os fones de ouvido e pôs-se a olhar o mar, absorta em seus próprios pensamentos. O sujeito falava muito, gesticulava bastante, ao que ela não mostrava sinal algum de descrença, mágoa ou contentamento. Senti que ela queria apenas ficar ali por alguns instantes mais, ouvindo o que as ondas iriam dizer. Talvez elas dissessem que aquela garota bonita deveria olhar para trás e me ver, que seus olhos doces deveriam encontrar os meus; depois, vai saber... 

Como num conto de fadas ela olhou para trás, e me viu boquiaberto a encará-la sem querer, sem poder, sem saber se era certo. Quando ela se levantou, senti um aperto no peito, e por um segundo pensei em erguer-me num salto e correr para bem longe - já era tarde. Com o frescor da juventude a embalar-lhe o passo, ela aproximou-se devagar. Antes que dissesse alguma coisa, decidi começar:

Você é a mulher mais bonita que eu já vi e eu quero me casar com você.

Ela me olhou com surpresa antes de me olhar com ternura. Logo respondeu:

Ah, que gracinha... Fala isso praquele cara ali, porque ele já se casou comigo e não parece muito satisfeito, não. Mas acho que se você pegar a bola de tênis que está na boca do seu cachorro e me entregar, ele vai ficar bem mais feliz.

Ela afagou meus cabelos e despediu-se com o mais belo sorriso.  Como é que pode um camarada com uma mulher daquelas pensando em bola de tênis? Naquele momento, soube que a vida adulta me levaria a dois caminhos - seria o rei da rua... ou mais um ser humano patético a integrar o tenebroso universo masculino. Decidi voltar ao video game e não pensar mais nisso.


segunda-feira, 28 de março de 2011

Novo testamento

Antes eu achava que Deus sempre sabia o que estava fazendo. Que mesmo com esse mar de gente ele estava também de olho em você. Você, aquela pessoinha emputecida que acha que tamanho não é documento mas adora gente grande. Você, que quer falar pra todo mundo tudo o que se passa, passaria ou passou pela sua cabeça nos últimos trinta e poucos anos. Você, que à primeira oportunidade de lazer, sai pela rua como um cachorro doido que só passeia uma vez por mês, e quer interagir com todo mundo que aparece. Você tem tanta necessidade de extravasar que acaba se perdendo por aí, pisando nos próprios pés, arrumando calos garganta afora. Você fala em verborreia - eu chamo isso de overdose do discurso.Você fala tanto, mas tanto, mas tanto que um dia tem que parar de falar por uma questão patológica - aquela voz que enche os lugares e modifica as pessoas... acabou. Como consequência, você é obrigado a passar um certo tempinho olhando pra si, ouvindo. Se alguém se convenceu de que o que hoje te impede de falar é o tamanho dos sapos que  você engole todo dia, eu te digo que o que eu vejo é a mão de alguém a te tampar a boca, a te olhar nos olhos, a te dizer "não; agora não; ainda não; de novo não - entenda". Você fala em patologias - eu penso em intervenção divina. Numa tarde ensolarada de fevereiro,  com vinte e poucos anos e dez reais no bolso, fumei tantos cigarros de uma vez que o dia virou noite de repente. Nunca mais consegui sequer segurar outro - nem pro amigo amarrar o sapato. Pela primeira vez foi-me tirada a voz, e pude ouvir com clareza as batidas do meu coração, a cadência do meu respirar, o barulho da rua, vozes de tanta gente ecoando pela minha cabeça, uma disputa emocionante de sentimentos a inundar-me o peito. Religião e religiosidade à parte, antes eu achava que Deus sempre sabia o que estava fazendo. Agora eu tenho certeza.

Novo testamento

Antes eu achava que Deus sempre sabia o que estava fazendo. Que mesmo com esse mar de gente ele estava também de olho em você. Você, aquela pessoinha emputecida que acha que tamanho não é documento mas adora gente grande. Você, que quer falar pra todo mundo tudo o que se passa, passaria ou passou pela sua cabeça nos últimos trinta e poucos anos. Você, que à primeira oportunidade de lazer, sai pela rua como um cachorro doido que só passeia uma vez por mês, e quer interagir com todo mundo que aparece. Você tem tanta necessidade de extravasar que acaba se perdendo por aí, pisando nos próprios pés, arrumando calos garganta afora. Você fala em verborreia - eu chamo isso de overdose do discurso.Você fala tanto, mas tanto, mas tanto que um dia tem que parar de falar por uma questão patológica - aquela voz que enche os lugares e modifica as pessoas... acabou. Como consequência, você é obrigado a passar um certo tempinho olhando pra si, ouvindo. Se alguém se convenceu de que o que hoje te impede de falar é o tamanho dos sapos que  você engole todo dia, eu te digo que o que eu vejo é a mão de alguém a te tampar a boca, a te olhar nos olhos, a te dizer "não; agora não; ainda não; de novo não - entenda". Você fala em patologias - eu penso em intervenção divina. Numa tarde ensolarada de fevereiro,  com vinte e poucos anos e dez reais no bolso, fumei tantos cigarros de uma vez que o dia virou noite de repente. Nunca mais consegui sequer segurar outro - nem pro amigo amarrar o sapato. Pela primeira vez foi-me tirada a voz, e pude ouvir com clareza as batidas do meu coração, a cadência do meu respirar, o barulho da rua, vozes de tanta gente ecoando pela minha cabeça, uma disputa emocionante de sentimentos a inundar-me o peito. Religião e religiosidade à parte, antes eu achava que Deus sempre sabia o que estava fazendo. Agora eu tenho certeza.

domingo, 27 de março de 2011

Oh captain, my captain

No dia de hoje, diga não à fuga. Não fuja de você, de mim ou dos problemas que têm que existir para que a vida faça algum sentido. Não fuja da raia, da praia, da onda - encare o que não vai bem no fundo dos olhos, com um suspiro franco de quem procura pela resposta certa. Hoje tente não falar nem mais nem menos do que o necessário para um bom entendedor, e tire do seu vocabulário um tal de "doa a quem doer". Afinal, sempre dói mais em você...

Oh captain, my captain

No dia de hoje, diga não à fuga. Não fuja de você, de mim ou dos problemas que têm que existir para que a vida faça algum sentido. Não fuja da raia, da praia, da onda - encare o que não vai bem no fundo dos olhos, com um suspiro franco de quem procura pela resposta certa. Hoje tente não falar nem mais nem menos do que o necessário para um bom entendedor, e tire do seu vocabulário um tal de "doa a quem doer". Afinal, sempre dói mais em você...

sexta-feira, 25 de março de 2011

Handwriting

Dentre o preto
e o branco
escolho
o amarelo
mesmo que o verde
me chame a atenção
e que o azul
seja sinal
de liberdade.
Dentre o certo
e o errado
bebo o incômodo,
como o complicado
;
pros sonhos tortos
de todo dia
há sempre
uma canção
plena de dor
dúvida
e mocidade.
Se é breve na vida
que fique;
vou seguindo
com passo
arrastado
os seus passos
rabiscam
meu peito
 de aço:
escrevem
"saudade".

Handwriting

Dentre o preto
e o branco
escolho
o amarelo
mesmo que o verde
me chame a atenção
e que o azul
seja sinal
de liberdade.
Dentre o certo
e o errado
bebo o incômodo,
como o complicado
;
pros sonhos tortos
de todo dia
há sempre
uma canção
plena de dor
dúvida
e mocidade.
Se é breve na vida
que fique;
vou seguindo
com passo
arrastado
os seus passos
rabiscam
meu peito
 de aço:
escrevem
"saudade".

quarta-feira, 23 de março de 2011

Planta do pé

Uma coisa que o ballet me ensinou foi a manter os pés no chão. Literalmente. Se o dedão assumir o trampo, o joanete aumenta. Se ficar tudo pro mindinho, a perna entorta. O peso do corpo deve ser distribuído por todos os dedos, igualmente. É assim que se sobe na meia-ponta. É assim que se ganha força e confiança para ir do plié para a ponta, e ficar lá em cima sem fazer careta. Isso pode querer dizer tanta coisa... Limito-me, porém, a comentar que o ballet é a única coisa que faço almejando consciência e precisão. E depois disso venho aqui me lamentar e perguntar a você por que é que todo o resto titubeia tanto. Ah, nem... Vai aprender a dar pirueta, menina, vai!

Planta do pé

Uma coisa que o ballet me ensinou foi a manter os pés no chão. Literalmente. Se o dedão assumir o trampo, o joanete aumenta. Se ficar tudo pro mindinho, a perna entorta. O peso do corpo deve ser distribuído por todos os dedos, igualmente. É assim que se sobe na meia-ponta. É assim que se ganha força e confiança para ir do plié para a ponta, e ficar lá em cima sem fazer careta. Isso pode querer dizer tanta coisa... Limito-me, porém, a comentar que o ballet é a única coisa que faço almejando consciência e precisão. E depois disso venho aqui me lamentar e perguntar a você por que é que todo o resto titubeia tanto. Ah, nem... Vai aprender a dar pirueta, menina, vai!

domingo, 20 de março de 2011

Let it be

Today I went to the shopping mall and I felt really sorry for everybody in there. Empty looks, hypnotized faces, exhausted feet moving here and there, going nowhere. Minds which seek for freedom and find themselves doomed to that odd 'lyfestile'. Then I realised something. It simply occurred to me that they were happy, truly happy, really happy. They were not thinking of the sick people in Africa. They were not concerned about global warming. They weren't even considering the possibility of recycling or helping an NGO. All those people had adapted themselves to that one and only truth - being what you see on tv, doing whatever you can to outdo your neighbour, your best friend. They had accepted fate and knew for sure that they did belong. I sighed and felt really sorry... for myself.
http://www.youtube.com/watch?v=Us-TVg40ExM

Let it be

Today I went to the shopping mall and I felt really sorry for everybody in there. Empty looks, hypnotized faces, exhausted feet moving here and there, going nowhere. Minds which seek for freedom and find themselves doomed to that odd 'lyfestile'. Then I realised something. It simply occurred to me that they were happy, truly happy, really happy. They were not thinking of the sick people in Africa. They were not concerned about global warming. They weren't even considering the possibility of recycling or helping an NGO. All those people had adapted themselves to that one and only truth - being what you see on tv, doing whatever you can to outdo your neighbour, your best friend. They had accepted fate and knew for sure that they did belong. I sighed and felt really sorry... for myself.
http://www.youtube.com/watch?v=Us-TVg40ExM

quinta-feira, 17 de março de 2011

Paz, Saúde e Sorte*

Deixou pra trás os pedaços de dentes que se misturavam à louça do jantar espalhada pelo chão. Foi até a porta e num segundo estava do lado de fora. Olhou para a casa modesta e caminhou devagar pelas ruas tão familiares. Seu salário comprava agora metade do que o fazia cinco anos atrás. Pensava naquele comediante americano que definiu o mecanismo das três classes sociais dominantes: a classe alta fica com todo o dinheiro e não paga nenhum imposto; a classe média paga todos os impostos e faz todo o trabalho; os pobres estão aí só pra encher a classe média de medo. Segundo ele, os políticos mantêm as classes média e baixa brigando bastante enquanto pegam todo o nosso dinheiro. A noite estava calma e dessa vez ela teve tempo de pensar que talvez ele tivesse razão.

Conhecia muito bem aquele caminho - diria que até bem demais. Ele dava em um hospital simplório, precário, o único da cidade. Ironia ou não, o hospital ficava ao lado do cemitério. Todas as vezes olhava com terror para as lápides que se erguiam soberanas em meio à vegetação mórbida e azulada,  e unia suas últimas forças para conseguir completar o trajeto. Ele bebia e batia nela; era assim. No dia seguinte ele chorava e pedia desculpas - e além do mais, ela não tinha para onde ir. As desculpas para si se alternavam, e a esperança de dias melhores a punha de pé todos os dias. Na primeira vez ela pensou que seria a última. Bem, acho que mais rezou do que resolveu-se acerca desse problema. Os amigos queriam que ela denunciasse; o pessoal do hospital não aguentava mais vê-la daquele jeito. Tentara em vão fugir algumas vezes, mas logo o dinheiro acabava e a falta de experiência era sempre maior que a vontade de ter alguma. Então ela voltava e lá estava ele, acabado em uma poltrona, olhos brilhantes pela possibilidade de um novo combate.

Naquele dia dirigiu-se ao seu habitual destino no horário de costume - depois da meia-noite para não se expor aos vizinhos. Havia, porém, algo diferente nela. Assoviou uma velha canção enquanto sentia a brisa acariciar-lhe o rosto. Nunca uma noite havia sido tão bonita, e ela, emocionada, chegou a sorrir. Há quanto tempo não sorria! O sorriso se transformou em uma enorme gargalhada, e ela dançou pela terra batida com os pés descalços, sem medo, sem dor, sem culpa alguma. Sentou-se em um banco de praça e por um bom tempo contemplou a lua e seu manto de estrelas. (...) Parou à porta e percebeu que o hospital estava mais movimentado que de costume. Caminhou a passos leves e avistou o doutor, os enfermeiros, uma ambulância, a recepcionista, todos aos berros, todos tentando arrancar com as mãos o desconsolo do peito. Preocupada, aproximou-se da maca que acabara de ser retirada da velha ambulância. Mal pôde acreditar no que via. Era ela; estava morta.

* A frase "Paz, saúde e sorte" é o lema de Andrea Amendoeira (Deinha)


Paz, Saúde e Sorte*

Deixou pra trás os pedaços de dentes que se misturavam à louça do jantar espalhada pelo chão. Foi até a porta e num segundo estava do lado de fora. Olhou para a casa modesta e caminhou devagar pelas ruas tão familiares. Seu salário comprava agora metade do que o fazia cinco anos atrás. Pensava naquele comediante americano que definiu o mecanismo das três classes sociais dominantes: a classe alta fica com todo o dinheiro e não paga nenhum imposto; a classe média paga todos os impostos e faz todo o trabalho; os pobres estão aí só pra encher a classe média de medo. Segundo ele, os políticos mantêm as classes média e baixa brigando bastante enquanto pegam todo o nosso dinheiro. A noite estava calma e dessa vez ela teve tempo de pensar que talvez ele tivesse razão.

Conhecia muito bem aquele caminho - diria que até bem demais. Ele dava em um hospital simplório, precário, o único da cidade. Ironia ou não, o hospital ficava ao lado do cemitério. Todas as vezes olhava com terror para as lápides que se erguiam soberanas em meio à vegetação mórbida e azulada,  e unia suas últimas forças para conseguir completar o trajeto. Ele bebia e batia nela; era assim. No dia seguinte ele chorava e pedia desculpas - e além do mais, ela não tinha para onde ir. As desculpas para si se alternavam, e a esperança de dias melhores a punha de pé todos os dias. Na primeira vez ela pensou que seria a última. Bem, acho que mais rezou do que resolveu-se acerca desse problema. Os amigos queriam que ela denunciasse; o pessoal do hospital não aguentava mais vê-la daquele jeito. Tentara em vão fugir algumas vezes, mas logo o dinheiro acabava e a falta de experiência era sempre maior que a vontade de ter alguma. Então ela voltava e lá estava ele, acabado em uma poltrona, olhos brilhantes pela possibilidade de um novo combate.

Naquele dia dirigiu-se ao seu habitual destino no horário de costume - depois da meia-noite para não se expor aos vizinhos. Havia, porém, algo diferente nela. Assoviou uma velha canção enquanto sentia a brisa acariciar-lhe o rosto. Nunca uma noite havia sido tão bonita, e ela, emocionada, chegou a sorrir. Há quanto tempo não sorria! O sorriso se transformou em uma enorme gargalhada, e ela dançou pela terra batida com os pés descalços, sem medo, sem dor, sem culpa alguma. Sentou-se em um banco de praça e por um bom tempo contemplou a lua e seu manto de estrelas. (...) Parou à porta e percebeu que o hospital estava mais movimentado que de costume. Caminhou a passos leves e avistou o doutor, os enfermeiros, uma ambulância, a recepcionista, todos aos berros, todos tentando arrancar com as mãos o desconsolo do peito. Preocupada, aproximou-se da maca que acabara de ser retirada da velha ambulância. Mal pôde acreditar no que via. Era ela; estava morta.

* A frase "Paz, saúde e sorte" é o lema de Andrea Amendoeira (Deinha)


terça-feira, 15 de março de 2011

Naked

All we ever do is escape - look for a path which might hurt less, which might feel a bit happier for just a little bit longer... We try to escape from death, from doctors, from dentists, we try to live as simply as we can, but there's always that discomfort, that secret sadness caused by the dissatisfaction of never making the right choice. This is such a long-lasting impression that sometimes we prefer staring at the sun to quickly glancing at ourselves. We all try to escape whenever we can, filled with that secret feeling of distrust. I'm often barefoot, and my misery is no secret to anyone.

Naked

All we ever do is escape - look for a path which might hurt less, which might feel a bit happier for just a little bit longer... We try to escape from death, from doctors, from dentists, we try to live as simply as we can, but there's always that discomfort, that secret sadness caused by the dissatisfaction of never making the right choice. This is such a long-lasting impression that sometimes we prefer staring at the sun to quickly glancing at ourselves. We all try to escape whenever we can, filled with that secret feeling of distrust. I'm often barefoot, and my misery is no secret to anyone.

domingo, 13 de março de 2011

A escritora

 - Bom dia, amor. Seu café.
- Ah, mas como você é gentil...
- Tudo pra você me amar mais.
- Mais?
- É, a ponto de estar escrito nas estrelas.
- Puxa... meio brega, hein?
- O que é que eu posso fazer se você me inspira?
(A janela se abre).
- Vou deixar você com seus botões; hora de trabalhar.
- Como assim? Você acha que eu não trabalho?
- Mas quem falou isso? Se bobear você trabalha até mais que eu!
- Ah, ainda bem que você entende isso. Já pensou no tanto de coisas que tenho que ler e no tanto de lugares aonde tenho que ir só pra ter uma boa idéia?
- Você sabe que não se deve escrever ideia com acento, né?
- Mas de que adianta eu escrever ideia sem acento se desconheço todas as outras normas da ortografia moderna? Ou um ou outro, não?
- É, faça como você quiser então.
- Você está insinuando que eu deveria saber?
- O quê?
- As normas da ortografia moderna, uai!
- Bem... talvez. Afinal, quem faz o que você faz deve ter que saber isso, eu acho.
- Lá vem você, eu sabia! Faz cafezinho romântico, fala meia dúzia de breguices, tudo só pra me afrontar! Que ironia requintada a sua! Fazendo chacota do meu ganha-pão na minha cara... Devo admitir que você tem se superado a cada dia. O que anda lendo?
- Wilde, Flaubert, Maquiavel, Nietzsche. Você me deu uns, comprei os outros.
- Hum... nada mal. Me empresta?
- Claro. Estão na segunda e terceira gavetas do meu criado.
- Quer que eu te prepare um café?
- Obrigado, querida, estou atrasado.
- Você me inspira, sabia? Suas ideias me dão de comer.
- É, eu sei. Vou deixar você dormir mais um pouco.
(Beijo na testa. Porta se fecha junto com a janela).
- Alô, Fernando? Já dei comida pra ela. Avisa pro pessoal que hoje ela deve voltar a escrever.

A escritora

 - Bom dia, amor. Seu café.
- Ah, mas como você é gentil...
- Tudo pra você me amar mais.
- Mais?
- É, a ponto de estar escrito nas estrelas.
- Puxa... meio brega, hein?
- O que é que eu posso fazer se você me inspira?
(A janela se abre).
- Vou deixar você com seus botões; hora de trabalhar.
- Como assim? Você acha que eu não trabalho?
- Mas quem falou isso? Se bobear você trabalha até mais que eu!
- Ah, ainda bem que você entende isso. Já pensou no tanto de coisas que tenho que ler e no tanto de lugares aonde tenho que ir só pra ter uma boa idéia?
- Você sabe que não se deve escrever ideia com acento, né?
- Mas de que adianta eu escrever ideia sem acento se desconheço todas as outras normas da ortografia moderna? Ou um ou outro, não?
- É, faça como você quiser então.
- Você está insinuando que eu deveria saber?
- O quê?
- As normas da ortografia moderna, uai!
- Bem... talvez. Afinal, quem faz o que você faz deve ter que saber isso, eu acho.
- Lá vem você, eu sabia! Faz cafezinho romântico, fala meia dúzia de breguices, tudo só pra me afrontar! Que ironia requintada a sua! Fazendo chacota do meu ganha-pão na minha cara... Devo admitir que você tem se superado a cada dia. O que anda lendo?
- Wilde, Flaubert, Maquiavel, Nietzsche. Você me deu uns, comprei os outros.
- Hum... nada mal. Me empresta?
- Claro. Estão na segunda e terceira gavetas do meu criado.
- Quer que eu te prepare um café?
- Obrigado, querida, estou atrasado.
- Você me inspira, sabia? Suas ideias me dão de comer.
- É, eu sei. Vou deixar você dormir mais um pouco.
(Beijo na testa. Porta se fecha junto com a janela).
- Alô, Fernando? Já dei comida pra ela. Avisa pro pessoal que hoje ela deve voltar a escrever.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Scapegoat

Há mais ou menos um ano me disseram que meu dente ia cair. Até hoje não tomei uma providência a respeito. Há quinze anos eu tento ter uma banda e sair por aí. Há quinze anos... Há muito tempo eu penso em ganhar mais e trabalhar menos; tenho nadado na direção oposta a esse pensamento. Fiz uma coisa diferente no cabelo, mas minha cara continua a mesma. Como não mudo, decidi manipular minha própria alma  e convencer os demais de que no fundo isso até que é bom. Afinal, há muita gente que, assim como eu, tem dificuldade pra encarar o diferente. Há muita gente que, assim como eu, prefere o lirismo de se estar indeciso ao peso da decisão (vulgo 'eterna escolha da pior alternativa'). Há tempos implodo dentro das minhas próprias aflições - depois de fingir que quero e  provar que tento, piso no mundo. Respiro devagar, abro os olhos, e enquanto as coisas voltam gradativamente ao normal, olho para o lado e falo mal de você, que nunca fez terapia e insiste na felicidade de cada uma das suas mudanças. Mas não se iluda, pois à sua pessoa não atribuo o menor valor - só acho que alguém tem que ser culpado por tudo que nunca haverá de dar certo.

Scapegoat

Há mais ou menos um ano me disseram que meu dente ia cair. Até hoje não tomei uma providência a respeito. Há quinze anos eu tento ter uma banda e sair por aí. Há quinze anos... Há muito tempo eu penso em ganhar mais e trabalhar menos; tenho nadado na direção oposta a esse pensamento. Fiz uma coisa diferente no cabelo, mas minha cara continua a mesma. Como não mudo, decidi manipular minha própria alma  e convencer os demais de que no fundo isso até que é bom. Afinal, há muita gente que, assim como eu, tem dificuldade pra encarar o diferente. Há muita gente que, assim como eu, prefere o lirismo de se estar indeciso ao peso da decisão (vulgo 'eterna escolha da pior alternativa'). Há tempos implodo dentro das minhas próprias aflições - depois de fingir que quero e  provar que tento, piso no mundo. Respiro devagar, abro os olhos, e enquanto as coisas voltam gradativamente ao normal, olho para o lado e falo mal de você, que nunca fez terapia e insiste na felicidade de cada uma das suas mudanças. Mas não se iluda, pois à sua pessoa não atribuo o menor valor - só acho que alguém tem que ser culpado por tudo que nunca haverá de dar certo.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Meu pé na sua porta

Tristeza. Controle. Depredação. Planos assassinados. Tudo aconteceu tão de repente que não houve tempo sequer para juntar os pedaços. Expectativas estranhas e novas soluções. Vamos tapar os buracos ou plantar outras árvores? Sinceramente? 
Tenho saudade do que quis um dia de forma cega e certa. Pois se nada nessa vida é certo, nem mesmo a morte... E eu aqui, querendo sem a coragem de dar um passo à frente para receber. Queria um pouquinho da terça parte dos dez por cento de calma e alienação que permeiam o cotidiano. Queria sorrir sem que me fosse apropriado - ter coragem para dar um passo à frente e receber. Cansei de respirar o ar de outras pessoas, e ao mesmo tempo insistem em roubar o meu! Enquanto eu achar que vivo e almejar tão somente sobreviver, a vida de verdade não ousará bater à minha porta. Viverei para sempre em todos os lugares, engolirei todos os tempos verbais à espera de um único suspiro. Soco no estômago! Now deal with it.

Meu pé na sua porta

Tristeza. Controle. Depredação. Planos assassinados. Tudo aconteceu tão de repente que não houve tempo sequer para juntar os pedaços. Expectativas estranhas e novas soluções. Vamos tapar os buracos ou plantar outras árvores? Sinceramente? 
Tenho saudade do que quis um dia de forma cega e certa. Pois se nada nessa vida é certo, nem mesmo a morte... E eu aqui, querendo sem a coragem de dar um passo à frente para receber. Queria um pouquinho da terça parte dos dez por cento de calma e alienação que permeiam o cotidiano. Queria sorrir sem que me fosse apropriado - ter coragem para dar um passo à frente e receber. Cansei de respirar o ar de outras pessoas, e ao mesmo tempo insistem em roubar o meu! Enquanto eu achar que vivo e almejar tão somente sobreviver, a vida de verdade não ousará bater à minha porta. Viverei para sempre em todos os lugares, engolirei todos os tempos verbais à espera de um único suspiro. Soco no estômago! Now deal with it.

sábado, 5 de março de 2011

Blowing in the wind

O que passou passou - histórias ao vento. Páginas de um caderno que se soltou, perdeu o meio. Só me vêm o antes e o depois - durante o dia me recordo. São momentos pequenos dentro de um tempo que passa sem parar, cheio de pressa. Penso e logo faço outra coisa, sem direito a parar pro café.

Blowing in the wind

O que passou passou - histórias ao vento. Páginas de um caderno que se soltou, perdeu o meio. Só me vêm o antes e o depois - durante o dia me recordo. São momentos pequenos dentro de um tempo que passa sem parar, cheio de pressa. Penso e logo faço outra coisa, sem direito a parar pro café.