terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Mudança

Há poucas horas, entre momentos, parei inconscientemente frente ao meu guarda-roupas. Portas abertas, me convidava a dar uma boa olhada em tudo o que eu tinha reunido até aquela hora. Nos cabides, passei as mãos pelos vestidos, pelas saias longas, pelas blusas, camisas e jaquetas, pelas calças de vários tipos e materiais. Nas prateleiras, saias, shorts, bolsas, mochilas, malas, sacolas de feira hippie, de feira gringa... Sentei-me ao pé da cama para ver mais de perto meus sapatos. Sandálias coloridas, saltos e rasteiras, tamancos e chinelos, botas e tênis - uma sapatilha. Comecei a pensar no motivo para o que faltava... O respirar tranquilo trouxe devagar a resposta: estava lá tudo o que me agradava, só a mim. Percebi ao vaguear os olhos pelo quarto que só ficou o que me importa. Levantei e passeei pela casa: uma casa bem morável - meia dúzia de móveis que me representam + uns eletrodomésticos que me ajudam. Os quadros que vieram são aqueles que contam histórias, mandam beijos e dizem pra eu não me distrair, que a felicidade é bem aqui - logo ali está a sua, é só procurar no lugar certo. Doei tantos sapatos que me davam calos, tantos vestidos que não se encaixavam, livros que li e que não leria, que adorei e que não... Pedaços de felicidades que não são mais ou nunca foram minhas - hoje eu sei e sou feliz pelas Cinderelas agraciadas por cada peça desse ex-closet chamado a gente tentando se encontrar. A gente quer mais sempre. Quero uma casa no campo sem cerca, com cachorro correndo enquanto brinco de mexer no jardim e meu marido brinca de cozinhar algo gostoso com uma taça de vinho e um Jack Johnson no background - e olha que ele nem brinca, cozinha mesmo ;) Quero um carro bom na garagem, umas duas viagens legais por ano e muito amor pra gente se presentear e dar de presente. E de tanto querer, a gente resolve anunciar o carro, pôr a casa à venda. Seguimos em busca da felicidade que estará lá à nossa espera. Se esse plano é satisfação garantida, por que então essa dor no peito ao ler o anúncio? Parece que de uma hora para a outra aquela casa escura que não te cabia tornou-se aconchegante, espaçosa, bem localizada, cheia de potencial! E aquele carro oneroso de marca desconhecida, além de lindo, é o mais potente, econômico e guerreiro da categoria. Peraí: então é errado querer aquela casa gostosa com cheiro de mato e família e segurança e prosperidade? É errado querer aquele carro mais alto, pronto pra guerra e mais vendável? Errado eu não diria, que é uma palavra danada de subjetiva. Como diria minha tia Leléia, é diferente. É toda uma outra vida, todo um novo propósito. Volto ao meu guarda-roupas, à minha estante de livros, à meia dúzia de móveis que me representam + uns eletrodomésticos que me ajudam. Essa vida é breve demais, é frágil demais, exige coragem, fé e autoconhecimento em um nível que talvez a gente nem tenha pra dar. Outro dia meu sogro estava tomando uma cerveja com o nome da nossa terra - agora, luta para dar aos filhos e à esposa um mínimo sinal de que ainda está ali, apesar do corpo imóvel, do olhar distante. Hoje disseram que ele ouve tudo - que seja então feliz ao som de boa música, embalado por doces memórias de mocidade, de vida adulta, de amor à vida, de trabalho e responsabilidades, de boas risadas entre os seus. Penso nisso e me dá um aperto na boca do estômago... Uma vergonha tão grande de ser feliz que enche meu peito de desespero e urgência, que a felicidade é esse agora que nos rouba uma fatia de fé por minuto ao mesmo tempo em que quer que a gente espere, que chore, que queira, que agradeça por estar nessa vida de passagem, nesse quando sem motivo algum, sempre a fazer as malas, sempre a olhar pra trás.