quarta-feira, 15 de abril de 2020

Enjoei

No início do ano meu sogro foi hospitalizado; 21 dias depois ele veio a falecer. Tudo completamente surreal. Lembro-me daquela madrugada de domingo pra segunda, quando o telefone tocou e meu marido começou a se vestir e eu não conseguia me mexer nem ouvir o que ele estava dizendo, tudo meio disforme, momento mais fora de foco... Antes de entrar no carro, uma sacudida e um recado: segure a onda. E eu segurei. Não derramei uma lágrima. Era a primeira vez que alguém partia bem na minha frente. Mas tudo bem: sou espírita, tenho mais é que saber lidar com isso, não é? Tive a ligeira impressão que era isso que ele e a família esperavam de mim - que eu fosse forte, sábia e que pudesse ajudar ao invés de dar mais trabalho. Fui lidando com aquilo tudo por fora. Na vida real, contudo, estava meio como o Brasil: começando a se recuperar da lambança financeira, esboçando colocar o nariz pra fora da toca e eis que chega a pandemia da anestesia. Nada como uma roupinha nova  ou aqueles tênis foda pra ir da sala pro banheiro e do banheiro pra cozinha, não é mesmo? Sim, isso mesmo. Dia 16 fui informada sobre a quarentena no meu trabalho - e já tinha recebido orientações para não comparecer por conta do meu quadro gripal na semana anterior. Não foi o bastante. Já tinha caído na teia do enjoei.com. Durante esse período, que começou meio inocente e foi tomando corpo, passava o mesmo período de tempo em frente às vitrines virtuais que um desocupado passa se desocupando no facebook (ah, não, agora é instagram; ah, não, agora é twitter - I say fuck'em all ;) - and now you're probably thinking fuck you your shallow prick). Diversão? I truly doubt it. Se você faz uma coisa que te gera ressaca moral, legal é que não pode ser. Como Santo Cristo, não entendia como a vida funcionava (você compra aqui e falta dinheiro ali pro essencial - e esse papo de you only live once é a bullshit da bullshit). E ao invés de ir direto a Salvador pra tentar achar resposta, aproveitei o longo tempo que me surgiu para brincar de ficar mais atenta. Comecei a prestar atenção à manipulação descarada da mídia, à falta de estabilidade do nosso governo, mais preocupado em lutar de espadinha do que em se unir e tranquilizar a população, à multiplicidade de discursos (em especial àqueles que de forma nem um pouco velada se ocuparam em fazer uma lavagem cerebral na massa a ponto de convencer as pessoas de que morrer de fome é mais digno e mais heróico que morrer de coroa vírus, meu apelido carinhoso a esse amigo que estamos carecas de conhecer, que conhecemos mais que nossos direitos, incluindo os fundamentais, como o de ir e vir e prover para nossas famílias). Assisti intrigada aos mandos e desmandos do general Kalil, ao fechamento das praças, à ordem recente de máscaras para todos na rua, à proposta de restrição do consumo de bebidas alcoólicas - dream on, hahahaha... Nessa (a)tenç/são toda, resolvi prestar atenção também (e por que não, gente?) às possíveis mensagens subliminares do meu site preferido. Topei com duas propagandas: 1. coloca esses óculos escuros pra fazer cara de quem não viu os boletos chegando (vixe!); 2. aproveite esses lookinhos pra assistir Netflix. Putz, esse último me atingiu como uma bomba. Era bem isso que estava fazendo - comprando coisas que eu nem sabia quando ia poder usar for Christ's sake! De repente, parece que caiu o cenário do show de Truman e vi, nos bastidores, centenas de mulheres realmente compulsivas, vendendo mil peças de roupa com etiqueta, uma coleção inteira de tênis raros com duzentos pares nunca usados - imaginei quantos outros itens esses guarda-frustrações devem carregar aos trancos e barrancos. E ao mesmo tempo em que doar é muito legal, comprar uma pra doar outra coisa não interrompe o ciclo do consumo - só dá a ele combustível mais "sustentável". Não posso negar que esse tempo foi e está sendo muito precioso. Afinal, é tempo, e tempo é tudo que a gente precisa pra olhar em volta, para ser mais justo, mais amigo, mais leal, menos infantil, mais presente, mais grato e menos egoísta (ainda que não tenha topado até o momento com um camarada a favor do isolamento sem emprego, sem perspectiva e com família pra bancar). Me reuni mais com meus parentes esses dias do que em toda a minha vida. Procurei amigos sumidos pra desejar bom dia, saúde, feliz páscoa. Tornei-me melhor? Não, meio que nem Natal, quando a gente resolve perdoar todo mundo e pedir a Deus pela união dos povos. Nessa brincadeira de princesa que acostumou na fantasia, meu marido perdeu o pai, e o tempo (ou a falta dele) engoliu minha capacidade de compreender que se o meu aparece a cada 3 ou 4 meses pra resmungar (é isso: cansei de ser politicamente correta, fofa e romântica), o dele ensinou tudo que ele sabe; viveu por ele; ensinou-o a ser positivo. Nem princesa nem gata borralheira - não aguento mais nada calada: nem a minha dificuldade de ser eu mesma. Só bem recentemente entendi que a gente coloca no tempo a culpa pela nossa própria desatenção, pela nossa inalteridade. É fácil demais não ter tempo - voltar atrás dói quando você se preocupa demais com a opinião de quem fica te esperando um passo à frente pronto pro brinde. Difícil mesmo é entender que estamos nos enganando e sendo enganados cada vez que alimentamos o jogo da espera, em que esperamos do outro a maturidade que não está em nós, que talvez nunca tenha sequer chegado perto. Sabe essa atitude de defensiva misturada com expectativa misturada com birra e regada a anestesia? Pois é, enjoei.