quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Princess Toadstool

 Era um sábado qualquer. Havia recebido um convite para correr com uma amiga bem cedo, mas acordei depois do horário e decidi que iria - pela primeira vez - dar a volta na lagoa da Pampulha correndo. Meu máximo havia sido 14 quilômetros em condições de tempo e espaço muito favoráveis. Parada há mais de dois meses devido a uma lesão no joelho e recém-saída da fisioterapia, não saberia dizer a vocês o que me levou a resolver tão firmemente dentro de mim que aquele seria o dia em que eu faria aquilo, e que daria o meu sangue independente das condições porque sou capricorniana - e porque sou eu. Falei pro meu namorado e ele simplesmente respondeu: Bora - vou com você de bicicleta. Ontem, assistindo a Nyad, filme profundo e sensível, esse dia brilhou na minha memória. A história envolve (sem spoiler) três premissas básicas: 1. nunca desista; 2. nunca é tarde para realizar seus sonhos; 3. it takes a team.

Chegamos às 13:30, e ele alugou a maior bicicleta disponível – o que, pra um cara de dois metros e dez, não passava de uma Caloi Ceci. Sol, calor, zero preparo – esse era o cenário. Quem corre sabe que a gente tem uns momentos de transe - sem eles acho que não daria pra percorrer tamanhas distâncias só com a força das pernas e a persistência dos pés. Quem manda, de fato, é a cabeça. Passava momentos meditativos duradouros e, a cada despertar, olhava pro lado e lá estava ele, com uma mochila nas costas cheia de coisas minhas, suando como uma chaleira e com cara de tudo certo. Lembro de pensar “é isso mesmo? É normal? Eu mereço?” enquanto sentimentos diversos iam tomando forma aqui dentro.

Com treze quilômetros, fui tomada pelo cansaço. Fiquei sem ar, o calor me afetava, as pernas doíam... meu corpo inteiro queria desistir. Pensamentos como "parabéns, você chegou até aqui", "está calor, não é culpa sua", "você fez o seu melhor", "ninguém está te cobrando isso", "você nem se preparou mesmo" foram inundando minha cabeça. Parei sem fôlego e saiu da minha boca: "não aguento mais". Aquele cara gigante, ensopado e dolorido por pedalar uma bicicletinha por mais de uma hora no sol com uma mochila nas costas cheia de coisas minhas, me pediu pra respirar e me disse: "você consegue. Se precisar, paramos a cada quilômetro até chegarmos lá. Falta muito pouco, força!" e eu olhei pra frente e voltei a correr. Não parei mais até o final dos 18 quilômetros. Até hoje rimos ao lembrar que não conseguimos nem tirar uma foto, de tão flabbergasted que eu estava (essa é a palavra, a sensação não cabe no português).

Nyad me tocou duplamente por trazer dois temas importantes - o poder da parceria e o impacto do abuso. Engraçado como de poucos dias pra cá vi três filmes retratando abuso sexual - e em dois deles, diferente do "padrão" (ou fato inegável), foram apresentadas situações de estupro que ainda confundem muitas mulheres: momentos em que, por qualquer motivo, elas disseram não e a outra parte da dupla decidiu que sim. Muitas de nós ainda não entenderam que foram abusadas - e pelo visto muitos homens também. Muito duro, e infelizmente comum, é o abuso por parte de maridos, namorados, parceiros, pessoas próximas, com quem você divide a cama, a casa, os fatos corriqueiros de todo dia - pessoas que, em suas cabeças doentes, ligam a intimidade que conquistaram ao direito de satisfazerem seus instintos quando e como lhes convier. Digo por mim que isso dói mais que ferida aberta, porque a gente se sente suja e traída e impotente e não digna de um amor de verdade, de um sonho que vale a pena ser realizado, de uma vida plena, com cachorro, planta e muita história linda. A gente faz terapia, reza, corre atrás da mais-valia, do autoamor, e ao primeiro não já sente um gosto doce na boca, de que lutar por você está, devagar e sempre, fazendo a diferença. It takes a team pra acabar com o Bowser e libertar a princesa, mas volta e meia o medo volta – ela ainda se lembra.

Entender que uma pessoa vai acordar num sábado quente, pegar uma mochila, atravessar a cidade e passar duas horas no sol em cima de uma bicicleta com cara de velocípede só pra te acompanhar, pra te cuidar e te ajudar a se superar, pra ser bem sincera, ainda é intrigante - cheira a banco de carro zero, aquela alegria quase entorpecente. Que o que fomos e o que um dia vivemos nos traga um senso de gratidão, porque cada linha torta desse livro direcionou o curso do seu rio, alongou suas pernas e braços, fortaleceu sua mente pra que você pudesse, mais uma vez, nadar - para o melhor lado do rio - porque você pode - porque você merece - porque um filme no Neflix pode abrir as portas e janelas da sua alma para o que existir de mais bonito e mais verdadeiro. Deixa o sol entrar... Voa!