sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Um coração simples

Tem dias em que a gente fica assim: não sabe se olha pra um lado ou pro outro, não entende muito bem se são duas ou cinco, quinta ou segunda. Tem dias em que a gente coloca o livro na mesa, prepara o terreno e não consegue reunir forças suficientes para abri-lo. Aí a gente liga a tevê e não tem nada bom. Checa o calendário para ter certeza de que os dias têm passado, de que o futuro tem se tornado menor a cada manhã. Sempre ansiei pelo simples, até ler uma obra-prima de Flaubert chamada "Um coração simples" e ser dilacerada pelo valor atribuído à mediocridade. Concluí que talvez por nunca tê-lo percebido, acabo me esgueirando  pelo complicado. É aí que começa nossa história.

Ao cair da noite, sempre me enamorava daquela luzinha pequena bem no alto da montanha. Por noites incontáveis fiz o pedido à primeira estrela, por anos e anos. Não sei mais quando comecei com isso, ou quem havia profetizado o ritual. Apenas aconteceu de alguém me dizer que era de praxe fazer um pedido à primeira estrela a surgir no céu - assim o fiz. Todas as noites esperava que ela aparecesse, para, então, recitar minha prece - num segundo nada doía: estava salva. Outro dia me disseram que a  minha estrela  é sempre a mesma: o planeta Vênus. Jamais havia me ocorrido que o simples pudesse ser assim tão  idiota.  Respirei com dificuldade e decidi abrir os braços para a novidade; precisava do imprevisível. 

Hoje um bicho enorme chegou fazendo muito barulho pela janela da frente - caiu no chão e não fez mais barulho nenhum. Senti uma pontada na boca do estômago, um incômodo físico indescritível que sempre vem  junto com a presença inesperada de um bicho enorme. Dei-me um banho de pânico; mergulhei de cabeça em todas as dores e os dissabores de um encontro inoportuno. Levantei-me da mesa com a sensação de que iria desmaiar a qualquer momento e caminhei trêmula até a porta da varanda. É esse o meu pedido de hoje, Senhor: só peço para conseguir fechar essa porta sem que esse bicho me engula viva ou me paralise para sempre com um toque gélido de horror! Por conta principalmente da idade, não achei que seria capaz de manobra tão audaciosa. Agarrei-me à porta como ao último copo de cerveja da festa e as duas metades se encontraram em fração de segundos.  Sentei-me devagar e tentei, com o pouco de classe que restava, ajeitar o cabelo e me recompor. O bicho continuava lá, aquele ser absolutamente intragável dentro da minha casa! Um animal vil,  capaz de tolher minha liberdade, invadir  completamente meu espaço. Lembrei-me  de um tio muito interessante que me respondeu quando eu o convidei para uma visita: Olha, Érika, isso eu não vou prometer, porque visita é tão chata para quem faz quanto para quem recebe. Você está na sua casa tranquilo, com sua cueca velha e sua blusa furada, quando o interfone toca e a visita forçosamente alegre anuncia que resolveu dar uma passadinha. Nada mais inconveniente. Pensei muito nisso até, sem saber exatamente como, chegar ao seguinte raciocínio: a tal criatura poderia ser ingênua, quem sabe até amiga? Poderia ter se perdido ao voltar para casa, poderia estar triste ou machucada. Imaginei-me naquela cena clássica: a menina que ama o natural, que não tem medo da relva, que estabelece com os amigos do campo uma espécie de comunhão, pegando o bichinho pela mão e devolvendo-o à natureza selvagem... Desse pensamento veio a idéia  de que  talvez ele tivesse algo a me dizer - talvez eu devesse respirar fundo e deixá-lo entrar. Afinal, ele poderia ser minha conexão com o mundo espiritual, e certamente eu contaria essa história para algum conhecedor do assunto e ele me diria com ar desolado que esse tipo de contato só se dá a cada duzentos anos, e que a cigarra-besouro-louva-deus era na verdade um dos mil disfarces de Jesus. A essa altura, já não sabia que horas eram; o telefone tocava e eu não queria atender - e se eu atrapalhasse o fluxo de energia? Ouvi um barulho na porta - ah, não, agora não! Rezei, pedi a Deus perdão por não ter sabido conduzir a situação  de forma a praticamente boicotar meu enlace cósmico, e já ia me levantar novamente quando me dei conta que a porta abrindo era a do vizinho. Assustei-me e espirrei. 

Nesse momento, nosso irmão camarada, talvez por causa do barulho, talvez porque estava na hora, começou a se mexer. Vou dizer uma coisa a vocês, bem entre nós, e que Deus me perdoe: se esse bicho era Jesus, é fácil compreender porque o inferno está cheio. A mosca geneticamente modificada - que com meus invejáveis conhecimentos botânicos classifiquei como cigarra por causa dos gritos - ressuscitou das cinzas e começou a debater-se furiosamente contra o vidro da porta. Ao constatar que não conseguia entrar, ela caiu no chão e emitiu um gemido de dor, de tédio, de qualquer coisa que demonstrasse a mais profunda insatisfação. A cada episódio, eu entrava em transe - fazia um saco com as próprias mãos e respirava desordenadamente, tentando resgatar qualquer outro tipo de reação sem qualquer tipo de sucesso. Imaginei as inúmeras vezes em que acampei, os banhos de rio, os mergulhos em cachoeiras, os pés descalços em terras desconhecidas... ONDE FOI QUE EU ARRUMEI CORAGEM? Fechei todas as portas e janelas, entrei debaixo do cobertor sem sequer sentir os nossos vinte e nove graus, liguei a televisão no máximo  e trouxe o telefone comigo, caso precisasse contactar o SAMU. Tomara que esse bicho morra ou desapareça - o importante é ele não estar aqui amanhã, pensei com meus botões.  Acomodei-me em meu travesseiro macio e pensei em Flaubert. Consegui enfim enxergar a beleza de ser medíocre.

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