domingo, 11 de janeiro de 2009

Uma menina que se chamava Amanda

Era uma vez uma menina que se chamava Amanda. Ela morava com os pais num apartamento bem apertadinho, mas tão pequenininho que nem tinha lugar pra ela brincar. Mesmo quando ela encontrava um cantinho e se sentava com suas bonecas, logo ficava desanimada, pois não havia ninguém para brincar com ela. Ah, e como Amanda gostava de brincar...

Por isso, Amanda adorava a escola: grande, cheia de amigos, brincadeiras, árvores e até bichos. Amanda passava o dia todo na escola, porque os pais trabalhavam muito. Todos os dias, ela era acordada por Neuza, sua única amiga neste apertamento, como ela sempre dizia. Esqueci de dizer que Amanda era uma menina por demais inteligente, que vivia brincando com a língua, inventando palavras e questionando tudo à sua volta. Pois bem, a velha amiga Neuza arrumava seu café e o especial a levava para a escola. Durante o café: “Já sabe, né, Amanda, nada de muita conversa...” e ela completava: “...’porque seu pai e sua mãe trabalham demais e precisam dormir’, já sei, Neuzinha, ‘deixa pra tagarelar na escola’, não é assim?” E Neuza balançava a cabeça e emendava com um sorriso: “Essa menina...”

Amanda se divertia muito na escola, e  a cada dia queria aprender mais e mais. Sempre muito alegre, era o xodó da Augusta da cantina, do seu Pedro da portaria, do disciplinário Jorge Altão – apelido dado pelos meninos porque Jorge era mesmo bem altão – e de suas professoras, todas encantadas com aquela menina que fazia poesia e cantava o Faroeste de Caboclo melhor que o mestre Renato Russo no ápice de seus 8 anos. Assim era Amanda: corria, sonhava, fazia e acontecia, criava mundos diferentes e gostava de ler e escrever. Amanda gostava de viver, e era feliz. Bem, até chegar em sua casa.

Às cinco e meia, Amanda se despedia de todos na escola e lá estava seu Dagoberto pra levá-la para casa. No especial, Amanda cantava músicas, recitava poemas, ria das piadas dos amigos – mesmo das que não entendia, porque não ficava bem admitir que não tinha entendido a piada -, era uma festa! Quando o especial dobrava a esquina, ela avistava sua única amiga no apertamento esperando de chinelos, avental e touca no cabelo, que a recebia com um sorriso no rosto largo e perguntava sobre as aventuras do dia. Amanda seguia o mesmo ritual: dava a merendeira para Neuza, guardava a mochila no quarto, tomava seu banho, colocava uma das roupas da pilha “roupas de casa” – isso mesmo: o guarda-roupas de Amanda era cheio de etiquetas dizendo pra que as roupas serviam –, jantava na cozinha com sua amiga e escovava os dentes. Em seguida, ela fazia o dever de casa no quarto, e seus pais sempre chegavam a essa hora.

Todos os dias, era a mesma coisa: “Oi, Amanda. Comeu? Tomou banho? Fez o dever de casa? Puxa, que dia cansativo! Vou tomar meu banho, comer alguma coisa e já venho falar com você.” Essa era a mãe. Pouco tempo depois, chegava o pai. “Oi, Amanda. Comeu? Tomou banho? Fez o dever de casa? Puxa, que dia cansativo! Vou tomar meu banho, comer alguma coisa e já venho falar com você.” E todos os dias Amanda fazia o dever de casa o mais bonito e caprichado que podia, e ficava esperando o pai ou a mãe vir ver. Mas nenhum vinha. Ela pegava seu caderno brochurão e ia até a sala para mostrar o para casa para o pai. Ele dizia a mesma coisa: “Amanda, não vê que estou ocupado agora? Estou assistindo ao jornal”. Amanda pedia desculpas e voltava para o quarto, pois sabia que o horário do jornal era o momento em que a mãe se empetecava de cremes, um após o outro, sempre em frente ao espelho, repetindo: “Eu sou uma pessoa bonita. Eu sou uma pessoa muito bonita”. Assim que o jornal acabava, Amanda corria cheia de esperança para o quarto da mãe, que dizia a mesma coisa: “Amanda, não vê que estou ocupada? Agora é hora da novela” e se sentava à frente da televisão. Não era permitido nenhum tipo de ruído nesse momento, e Amanda voltava para o quarto murchinha como uma planta que ninguém rega. E ficava sozinha. Bem, mais ou menos. É que Amanda tinha um passatempo muito gostoso: ler. Ela lia, lia, lia suas revistinhas da turma da Mônica, seus livros de contos e os poemas mais lindos de Cecília Meirelles. E sonhava. Em seus sonhos, seus pais passeavam com ela, brincavam com suas bonequinhas no cantinho do seu apertamento, sorriam, abraçavam e beijavam sua filhinha... Acordava às seis da manhã com um cafuné de Neuza. E não entendia porque as histórias dos livros eram tão diferentes da sua. E começava tudo de novo. Nos finais de semana, os pais estavam sempre muito cansados para ela, e dormiam muito, saíam bem tarde e dormiam muito de novo. E Amanda rezava para chegar logo a segunda-feira, e com ela a escola.

Um dia, depois de muito pensar, pensar e quase quebrar sua cabecinha pensando, Amanda descobriu uma maneira de ficar mais tempo com seus pais: assistindo televisão! Era só sentar-se no sofá e ficar bem quietinha. Quem sabe se nos intervalos do jornal o pai perguntaria como foi a escola ou pediria para ver seu trabalhinho de artes? Quem sabe se nos intervalos da novela a mãe pentearia seus cabelos ou pediria para ver alguma de suas bonecas? E assim ela ia, cheia de esperança, até o sofá, carregando o pente, a boneca e o trabalhinho, e se sentava em silêncio. E esperava até a propaganda, mas qual! A propaganda também era importante, e ela concluiu que não se podia falar enquanto a televisão estivesse ligada. De jeito maneira, simples assim. E assim Amanda passava suas noites: sentava-se ao lado do pai e da mãe, e assistia ao jornal e à novela. Foi aí que o mundo de Amanda começou a mudar. Ela via pessoas chorando no jornal e muitas maldades na novela. A menina sonhadora e alegre abandonou seus livros e histórias para mergulhar num universo chamado “novela das oito”, depois de acompanhar as catástrofes da vida real no jornal nacional. Ela pensava, pensava, mas não entendia porque as pessoas faziam aquelas coisas horríveis umas com as outras, e nem porque Deus deixava enchentes levarem casas, furacões destruírem cidades e tsunamis afogarem tanta gente. Por que as histórias dos livros eram tão diferentes das que via na televisão? Mas o que Amanda não entendia mesmo era por que seus pais ficavam tão vidrados assistindo a toda aquela tristeza.

Na novela, Amanda via pais que não gostavam dos filhos, filhos que não gostavam dos pais e todo o tipo de crueldade. Nesse novo universo, as pessoas mentiam, faziam as outras ficarem tristes e as coisas feias não tinham limites. Não foi difícil para nossa pequena amiga chegar à seguinte conclusão: MEUS PAIS NÃO GOSTAM DE MIM. Eles não se importam comigo, preferem ver essas coisas feias a ficar comigo, e gostam de assistir a esses pais que não gostam dos filhos e que fazem maldade com eles na televisão...

Puxa, como ficou apertado o coraçãozinho de Amanda depois daquela descoberta! Contou para Neuza, que só disse “deixa de bobagem, Amanda”, mas não conseguiu convencer a menina do contrário. Tudo fazia sentido para ela – o que estava na novela e no jornal era a mais pura verdade, os seus livrinhos eram bobos e só tinham historinhas de mentira. Agora ela não acreditava mais em Papai Noel, nem no coelhinho da Páscoa, e nem mesmo na Fada do Dente. Que tristeza!

Amanda ficou triste, chorou, chorou, e um dia decidiu: não iria gostar dos pais também. Não quis mais mostrar os trabalhinhos, não quis mais fazer os deveres caprichados e disse à professora Inês que não apresentaria mais o poema de homenagem às mães na próxima semana. Engolia o jantar e fazia o dever o mais rápido possível, só para se enfiar na cama e fingir estar dormindo quando os pais chegassem do trabalho. A mãe corria à cozinha preocupada: “Neuza, Amanda está doente?” O pai ia ao quarto de Amanda, sempre escuro, e corria à mãe, preocupado: “O que essa menina tem, meu Deus?” Neuza se limitava a dizer: “Culpa dessa televisão...”. Ninguém entendia nada. Os dois davam de ombros e voltavam a assistir a seus programas preferidos.

Um dia, a professora Inês, preocupada e disposta a animar sua melhor aluna de português, preparou uma aula muito interessante sobre nomes. Ela levou um livro bem grande para a sala e mostrou aos alunos o significado do nome de cada um. Os meninos se animaram bastante: Pedro rolou de rir quando descobriu que seu nome significava “pedra”, Érika se gabou ao saber que seu nome significava “poderosa como uma águia”, e Marina achou muito legal seu nome significar “do mar”, já que ela gostava bem de uma praia. Amanda olhou o dela: “digna de ser amada”. Achou estranho, não entendeu muito bem e já ia desistir de entender quando a professora Inês lançou o desafio: como dever de casa, os alunos deveriam perguntar aos pais por que eles haviam escolhido os seus nomes. E agora, o que Amanda iria fazer? “Ai, meu Deus, vou ter que conversar com meus pais”, pensou. Pediu à professora para fazer uma pesquisa na internet, sugeriu perguntar aos pais de sua vizinha, também chamada Amanda, mas ela foi categórica: “essa pesquisa tem que ser feita com os seus pais”.

Amanda respirou fundo e voltou para casa pensativa. Não cantou músicas, não recitou poemas e nem riu das piadas dos amigos. Não tagarelou no jantar, como costumava fazer, e dessa vez foi Neuza quem estranhou: “Amanda, o que é que você tem, menina?” Amanda explicou o problema à amiga, que só disse “Deus escreve certo por linhas tortas”. Ah, essa Amanda não entendeu mesmo. Coçou a cabeça e olhou pra Neuza confusa. “Um dia você vai entender, Amanda, um dia você vai entender”...

É, o jeito era mesmo encarar a fera – ou seja, o jeito era conversar com seus pais. Jantou e foi para o quarto aflita, ensaiando na frente do espelho o que iria dizer. Nesse dia, os pais de Amanda chegaram juntos em casa, e foram direto ao quarto da filha. Antes de abrirem a boca, a menina começou: “Oi, pai; oi, mãe. A professora Inês pediu que perguntássemos uma coisa aos pais para uma pesquisa, e como é para amanhã, vou perguntar agora e depois vocês podem tomar um banho, comer alguma coisa e assistir televisão.” Os pais de Amanda, surpresos, não sabiam o que dizer. Ela aproveitou a chance, pegou o lápis e o caderno, sentou-se na cama e continuou: “É só uma pergunta: por que vocês decidiram me chamar de Amanda?” Ela então se preparou para anotar a resposta, e qual não foi a sua surpresa ao ver seus pais com os olhos marejados de lágrimas, olhando para a menina com tanta ternura que ela nem conseguia acreditar! Os pais de Amanda se sentaram na cama, cada um de um lado. A mãe pegou o lápis da pequena mão da filha e escreveu no caderno brochurão:

AMANDA

Nossa amiguinha não entendeu patavinas, e já ia começar a perguntar quando a mãe explicou: “Eu e seu pai escolhemos esse nome para você porque dentro dele existem três palavrinhas que dizem como queríamos nossa filhinha: alguém que AMA as pessoas e os animais, a natureza e a vida; que MANDA em seu destino e escolhe seu próprio caminho; e que sempre será, acima de tudo, muito AMADA.” A mãe de Amanda começou a chorar e a abraçou forte. O pai acariciou-lhe os cabelos e beijou suas trêmulas mãozinhas. Seria um sonho? Amanda, com uma vozinha que quase não saía de tanta emoção, perguntou tímida: “Uai... mas vocês gostam de mim?” Ao que os pais riram e responderam: “Claro, minha filha, que pergunta é essa?” Amanda sentiu um frio na barriga, e ficou com medo que aquele momento acabasse, e pensou que os pais iriam acabar brigando com ela porque ela falava demais, e começou a ficar brava com ela mesma por sempre querer saber de tudo. Pensou, olhou para os rostos confusos do pai e da mãe, e resolveu que ela tinha que saber. “Eu achei que vocês não gostavam de mim, porque os programas que vocês assistem na televisão são cheios de famílias que brigam e pais e mães que não gostam dos seus filhos. Vocês não olham o meu dever de casa, nunca viram meus trabalhinhos de artes e nem sabem que a minha professora acha muito legal os poemas que eu escrevo. Vocês não me levam para passear e nem brincam comigo. Puxa, vocês nem conversam comigo, sabe? Parece que vocês gostam mais da televisão do que de mim...” O queixinho de Amanda ficou trêmulo e uma lágrima rolou do seu rostinho redondo. Os pais não sabiam o que dizer. O pai pegou a menina pela mão e começou, muito emocionado: “Você tem razão, Amanda. Nós estamos sempre tão cansados que nunca temos tempo pra você, né? Todos os dias eu digo que vou falar com você e vou assistir televisão. Só agora percebi que você começou a assistir televisão pra ficar perto da gente, pelo menos um pouquinho...” e não conseguiu continuar. A mãe de Amanda segurou seu rostinho redondo, limpou a outra lágrima que caía e disse: “Minha Amanda, você é tão especial, muito mais do que eu e seu pai sonhamos! Você nos enche de orgulho, e essa correria de todo dia fez a gente se esquecer de te mostrar o quanto te amamos... fez a gente se esquecer que você é uma criança, que gosta de brincar, tomar sorvete, passear no parque, que precisa de carinho e atenção. Nós te amamos muito, e prometo que vamos nos lembrar de regar nossa plantinha todos os dias.” Os três ficaram ali, abraçados, por um longo tempo. Foi o abraço mais gostoso da vida de Amanda, e ela ficou feliz demais, porque sabia que a plantinha era ela.

No dia seguinte, uma surpresa: os pais de Amanda vieram acordá-la com um beijo e um café bem gostoso. O pai disse que daquele dia em diante iria levá-la à escola. Nem precisa dizer que nossa amiguinha era só sorrisos na aula de português. Contou animada aos colegas e à professora sobre a escolha de seu nome, e no final da aula perguntou se ainda poderia recitar o poema do dia das mães. A professora Inês ficou muito animada, e disse que não tinha dado o poema a mais ninguém, pois sabia que ela acabaria mudando de idéia. Percebendo a mudança de Amanda depois do trabalhinho, a professora pensou alto: “Deus escreve certo por linhas tortas.” Dessa vez ela entendeu: Deus escrever por linhas tortas era uma coisa ótima.

Amanda voltou para casa feliz da vida e contou a Neuza tudo que tinha acontecido. A amiga sorriu e gostou muito das novidades, mas ainda estava preocupada: e a televisão? Amanda deu a merendeira para Neuza, guardou a mochila no quarto, tomou seu banho, colocou uma das roupas da pilha “roupas de casa” – caso vocês não se lembrem, o guarda-roupas de Amanda era cheio de etiquetas dizendo pra que as roupas serviam –, jantou na cozinha com sua amiga e escovou os dentes. Acabou tudo isso e foi para o quarto fazer seu dever de casa, aflita, sem saber o que a esperava.

Os pais de Amanda chegaram juntos, com algumas sacolas nas mãos. Entraram no quarto, deram um beijo na filha e entregaram as sacolas. Sem entender muito bem, Amanda abriu as sacolas e quase teve um troço quando viu o que tinha dentro: livros! Muitos livros! Toda a coleção da Casa Amarela, com Rubião Gatão, Leiloca Gatoca e outros felinos em histórias que mexiam com sua imaginação. Para Gostar de Ler, com muitas aventuras contadas por Monteiro Lobato. Os Três Porquinhos Pobres, uma história pra lá de divertida do Érico Veríssimo. E um livro bem grande, chamado “A História Sem Fim” – “esse é pra você ler daqui a um tempo, minha filha, pra nunca deixar de sonhar”, a mãe disse. Os olhos de Amanda brilhavam, e o pai anunciou que todos os dias ele e a mãe leriam uma história para ela. No ápice de seus 8 anos, Amanda pulou de felicidade, e para sempre sentiu-se a menina mais sortuda do mundo, simplesmente porque se chamava Amanda.

4 comentários:

  1. Instigante e muito bem escrito, amei.

    PS:Saudades :)

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  2. Nossa!!! Q orgulho de me chamar AMANDA!!! Linda história Erikita! Amei!

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  3. me emocionei muito ao ler, especialmente porque tambem tenho uma filha AMANDA, e esta com a mesma idade da personagem, e demonstra a realidade de muitas familias. ela tambem gostou muito, Nara.

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