terça-feira, 3 de setembro de 2013

Hell's bells

Acabo de atropelar um homem. Era um homem qualquer, um senhor de meia-idade sem traços expressivos, mais um rosto sem nome no meio da multidão. Usava sua moto velha para encurtar as distâncias entre o bairro rico onde presta serviços e seu pouso a muitos quilômetros dali. Encurtar as distâncias... Vim pedalando em meu carro bonito, cabeça em lugar que eu não saberia dizer, Black Rocket sem querer parar - ele gritou, eu parei. Quiseram me perguntar quem estava errado, mas é claro que a errada era eu. Eu no meu carro bonito, cabeça em lugar que eu não saberia dizer, contando ovelhas antes de dormir; roupas escolhidas, sapatos que comprei porque quis, dirigindo-me a meu apartamento confortável no bairro rico onde o senhor presta serviços. Encurtar as distâncias... A errada era eu e ele sabia. Desci do carro tomada de estranha calma e aproximei-me do senhor que ainda tinha que ir para casa. Ele me olhou com ternura. A errada era eu e ele sabia. Encurtar as distâncias... Pedi a Deus pelo seu bem estar; queria que ele vivesse mais do que sobrevivesse. Perguntei ao senhor se ele estava bem, se precisava de alguma coisa. Qualquer coisa. Encurtar as distâncias... Você pode achar que sou louco, ele disse, mas eu só preciso de uma coisa: que você esteja atenta. Mas a minha bolsa... no carro... o seguro... hospital... nada. Ele disse que era pai e mãe, e que seus filhos o esperavam na casa onde modestamente se escondia, a tantos quilômetros dali - tudo tão diferente! Ele olhou para o céu e agradeceu por estar bem, por estar vivo, por poder voltar a seu pouso e rever os filhos, por poder sair para trabalhar quando a manhã seguinte ainda seria noite. Ele estava feliz em sobreviver; eu só queria que ele vivesse. Quis que sua vida fosse tão bonita quanto aquele momento - que o seu Deus fosse a ele sempre fiel, como o adesivo colado em sua moto velha, que usava para... Quis chorar mas não podia - ele queria que eu estivesse calma antes de dar a partida. Catou os cacarecos que se haviam desprendido da moto no meio da rua, e disse que tudo ficaria bem com uma boa cola. Virei-me para pegar a bolsa no carro; ele acomodou-se na moto e voltou para a rua, para seu trajeto decorado rumo a um destino certo e a ele agradável. Vocês viram se ele conseguiu ligar a moto, perguntei a dois vigias que haviam flagrado o ocorrido. Sim, já atravessou a avenida, sumiu no mundo. Ele não quis fazer o B.O., não quis atendimento médico, não quis que examinassem a moto...  a preocupação: minha cabeça doía. Sim, e certamente quando chegar em casa os filhos vão querer a placa do seu carro para te acionarem na justiça. Não faça esse cara, dona: todo mundo sabe que não existe gente boazinha. Mas não se preocupe: quando isso acontecer, pode contar com a gente. Seremos testemunhas. Engoli seco; eu só queria... encurtar as distâncias.

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