sábado, 23 de abril de 2011

O morto... vivo

Zé Oswaldo morreu na madrugada de 21 de abril; o vento soprava forte e era impossível pensar em outra coisa que não ficar em casa. Mas amigo é amigo, obrigação é obrigação... Assim, lá estava eu, quarenta minutos depois, mais morto do que vivo, tentando achar o caminho para o cemitério do Bonfim.  

O despertar veio súbito ao olhar o morto. Porra, Zé Oswaldo, o que é que você tá fazendo aí dentro dessa caixa de madeira, meu irmão? Meus olhos se umedeceram sem que eu me desse conta. Senti vontade de dar um murro bem no meio do peito dele, só pra ver aquele corpinho azulado e franzino recuperar a cor, desatar a tossir e soltar aquela frase de sempre: quem sou eu pra te imitar, rapaz! Que frasesinha ridícula aquela; ainda assim, me acabava de rir sempre que a ouvia. Senti um calafrio ao pensar que não a ouviria mais.

Conheci Zé Oswaldo na faculdade. Era um cara engraçado sem querer ser, um daqueles tipos que fazem piada da própria feiúra ou de qualquer das suas desventuras em série.  Magrelo e pequeno,  ele sabia  exatamente o que dizer às garotas - eram todas loucas por ele. Pra dizer a verdade, essa foi uma das coisas que nunca entendi. Segura sua onda, carioca: aprende com o mineirinho aqui  que o negócio é comer quieto, ele dizia com uma piscadinha cretina. Ficamos amigos logo de cara, e em menos de um ano já morávamos juntos.  Voltei  no  tempo e em um segundo estava naquele velho apartamento em Santa Tereza - agradeci em silêncio por termos sobrevivido. Uma bela belo-horizontina me fisgou, e me casei um ano depois. Consegui um emprego em uma companhia de seguros e comecei a viver como gente grande. Zé Oswaldo estava na pior nessa época, bebendo muito e sem perspectiva alguma. Conversei com meu chefe e ele conseguiu um emprego na parte de RH. Ele era boa-praça demais pra ter qualquer problema na vida - ainda assim era um beberrão e um mulherengo incorrígível. Você tem é que arrumar uma mulher, Zé Oswaldo, uma mulher pra organizar sua vida, sempre dizia a ele. Ao que ele respondia: quem sou eu pra te imitar, rapaz! Olhava pra ele, desarmado, e era impossível não cair na risada.

Agora, olhar pra ele ali, dentro daquele caixão, com um terno azul claro e o cabelo penteado, parecia uma brincadeira de mal gosto. A quantidade de mulheres entrando, saindo e chorando como se o mundo fosse acabar ali mesmo completavam o espetáculo. O pai, seu Conrado, estava visivelmente abalado com a tragédia. Não dizia nada, não ouvia ninguém. Pálido, murcho, só fazia segurar a mão de Zé Oswaldo por debaixo do véu que o cobria. Quase não piscava. Imagino que a ele faltava energia para lidar com aquele punhado de gente se contorcendo de dor - em outras palavras, sofrendo por educação. O pessoal do trabalho foi chegando aos poucos, todos consternados. Em cada canto era possível ouvir um pedaço dessa ou daquela história, e de repente percebi que havia se formado uma roda em volta do caixão, e as pessoas, entre elas amigos, ex-amantes, parentes e admiradores como o Paulão da portaria, o seu Geraldo da oficina e o Juvenas da farmácia, revezavam-se para contar cada uma das pérolas protagonizados por Zé Oswaldo. Entre risos e lágrimas, houve uma grande comoção ao despedirem-se daquele camarada que ficaria no coração de todos nós. O caixão sumiu no meio da terra. Hora de ir embora.

Passei um feriado amargo, e dessa vez nem a bacalhoada da minha esposa foi capaz de arrancar-me um suspiro na sexta-feira santa. A segunda chegou rápida como um raio e não houve outra coisa a fazer senão vestir-me muito a contragosto, entrar no carro e deixar que ele me levasse ao trabalho. Pensava na cadeira de Zé Oswaldo vazia e sentia um nó na garganta. Como é que você me morre assim, seu puto? Como é que você faz isso comigo? Ia pensando e amargando aquela ausência a doer-me o peito. Cheguei no trabalho e as caras não estavam nada boas. Alguns colegas vieram me dar os pêsames por saberem da nossa longa amizade. Eu queria sinceramente que todo mundo fosse pro inferno, não estava nem um pouco a fim de lidar com aquelas condolências corporativas. Caminhei lentamente em direção à minha mesa, mas fui interrompido pelo garoto do xerox. Ele tentava dizer alguma coisa, mas não conseguia. Só faltava essa agora: decifrar mensagem de gago em plena segunda-feira. Quando viu que não ia conseguir dizer coisa alguma, Fábio Jr. me pegou pelo braço e me levou pelo corredor. Tá maluco, garoto? Enchi o peito de ar pra dar aquela bronca, mas logo entendi do que se tratava. Ele estava me levando à sala de Zé Oswaldo. Não consegui argumentar - fui com ele. Uma hora isso ia acabar acontecendo mesmo. A diferença é que numa empresa menor eles esperariam o morto esfriar no caixão antes de pedirem ao seu melhor amigo que empacotasse suas coisas. Em breve outro funcionário ocuparia aquela mesa. Que merda. Chegamos à sala. Dito e feito: já havia um sujeito ocupando a mesa. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, porém, o sujeito se virou e quem morreu fui eu. Literalmente. Senti uma dor enorme no peito e mal tive forças pra dizer Puta que pariu, é o Zé Oswaldo!

Acordei em uma cama de hospital, rodeado de aparelhos e picado pra todo lado. Minha mulher me abraçou e antes que o médico viesse, comecei a me agitar de novo. Zé Oswaldo, Zé Oswaldo, era só o que conseguia dizer. Lembrei-me da situação no trabalho, e veio-me a nítida imagem de Zé Oswaldo, queimado de sol e com cara de muitos amigos, sentado à sua mesa como era de costume. Será que ele queria me dizer alguma coisa? Será que ele tinha vindo me buscar? Será que... Mas o buraco, vim a saber depois, ah, esse era bem mais embaixo. Pra resumir uma história longa, o título: Irmão gêmeo. Trama: mudou-se com a mãe para o norte logo que nasceu. A mãe morreu, ele sumiu no mundo, desapareceu - também se chamava José Oswaldo. A mãe não falou do pai, o pai não falou da mãe, ninguém falou de irmão algum. Anos depois, teve a curiosidade de procurar pelo pai, e acabou encontrando um endereço em Belo Horizonte. Foi atropelado em frente ao prédio do pai de nosso protagonista - morreu na hora.  Na identidade, tudo batia: idade, data de nascimento, filiação, naturalidade. O porteiro chamou o pai, que não via o filho há uns bons dois anos, e rapidamente o velório já havia sido arranjado.

Quem sou eu pra te imitar, rapaz... Era a voz de Zé Oswaldo, que da porta do quarto, olhava para minha figura caquética e moribunda com a cara mais debochada desse mundo. Olhei pra ele e ficamos ali, rindo sem parar por sei lá quantos minutos.






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