sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Felicidade conjugal

"Tratava-me como um jovem amigo de quem se gosta, interrogava-me, provocava-me à minha maior franqueza, dava-me conselhos, estimulava, às vezes censurava-me e detinha-me. Mas, apesar de todos os seus esforços para tratar-me como sua igual, eu sentia, que, por trás daquilo que eu compreendia nele, ficava todo um mundo ignorado, em que ele não considerava necessário introduzir-me, e isto mais que tudo sustinha em mim o respeito por ele e me atraía. (...)

A princípio não me agradou, mas depois, pelo contrário, passei a achar agradável a sua completa indiferença e como que desdém pela minha aparência. Nunca me sugeria, por um olhar ou por uma palavra, ser eu bonita, e, pelo contrário, fazia careta e ria se, na sua presença, alguém me chamava de bonitinha. Gostava até de encontrar em mim defeitos de físico e espicaçava-me com eles. (...) Mas eu logo compreendi o que ele necessitava. Queria acreditar que em mim não havia coquetismo. E, depois que eu compreendi isso, realmente não sobrou em mim nem sombra de coquetismo nos trajes, nos penteados, nos movimentos; e em compensação, apareceu, cosido a linha branca, o coquetismo da simplicidade, numa época em que eu ainda não podia ser simples. Eu sabia que ele me amava - como uma criança ou como mulher, eu ainda não me interrogava; tinha em alto preço este amor, e, sentindo que ele me considerava como a melhor das moças no mundo, não podia deixar de desejar que essa mentira permanecesse nele. E, involuntariamente, eu o enganava. Mas, enganando-o, eu própria me tornava melhor. Sentia o quanto era melhor e mais digno para mim exibir-lhe as melhores partes do meu espírito que as do corpo. Ele atribuíra imediatamente o devido valor, parecia-me, aos meus cabelos, às mãos, ao rosto, aos gestos habituais, quaisquer que fossem, bons ou maus, e conhecia-os tão bem que eu nada poderia acrescentar ao meu físico, além de um desejo de enganar. Mas ele não conhecia o meu espírito, porquanto o amava e porque este, na mesma época, crescia e desenvolvia-se: era nisso que eu podia enganá-lo e o enganava.  E que leveza eu senti na sua companhia, depois que percebi isso com nitidez! Desapareceram em mim de todo os constrangimentos sem motivo, os movimentos freados. Eu sentia que, estando de frente ou de lado, sentada ou em pé, ele me via, quer eu estivesse com os cabelos para cima ou para baixo: conhecia-me toda e, a meu ver, estava contente comigo, como eu era. Penso que, se, contrariando os seus hábitos, ele me dissesse de repente, como os demais, que eu tinha um rosto lindo, eu não me alegraria um pouco sequer. Mas, em compensação, que prazer, que claridade, apareciam-me na alma quando, após alguma palavra minha, e depois de me olhar fixamente, ele me dizia, a voz perturbada, à qual procurava infundir um tom brincalhão:

- Sim, sim, você tem algo. É moça simpática, devo dizer-lhe.

E por que eu recebia então tamanhas recompensas, que me enchiam o coração de alegria e orgulho? (...) E era surpreendente, pensei, com que intuição extraordinária eu percebia então tudo o que era bom e que se devia amar; embora eu então decididamente não soubesse o que era bom e o que se devia amar. Grande parte dos meus hábitos e gostos anteriores não lhe agradavam, e bastava que ele mostrasse, com um movimento de sobrancelhas ou com um olhar, desagradar-lhe aquilo que eu pretendia dizer, bastava que apresentasse sua expressão peculiar, lastimável, quase desdenhosa, e eu tinha já a impressão de não gostar mais daquilo que eu gostava antes. Às vezes, ele apenas queria aconselhar-me algo, e eu já parecia dizer o que ele diria. Se me formulava uma pergunta, fitando-me nos olhos, o seu olhar puxava para fora de mim o pensamento que ele queria. Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e iluminaram-na. De maneira de todo imperceptível para mim, passei a encarar com outros olhos tudo (...). Ele desvendou para mim toda uma existência de alegrias no presente, sem alterar nada em minha vida, sem acrescentar nada, além de si mesmo, a cada impressão. À minha volta, tudo era quieto, como o fora desde a minha infância, mas bastava que ele chegasse, e tudo passava a falar, todas as coisas pediam entrada em minh'alma, uma de cada vez, e enchiam-na de felicidade.

Nesse verão, eu subia frequentemente ao meu quarto, deitava-me no leito, e apossava-se de mim, em lugar da anterior angústia primaveril dos desejos e esperanças no futuro, um sobressalto de felicidade no presente. (...) [P]arecia-me tão indispensável e justo que todos fossem felizes. (...)

O quarto pequeno estava quieto. (...) E eu tinha vontade de nunca sair desse quartinho, não queria que chegasse a manhã e se dissipasse essa atmosfera interior, que me rodeava. Tinha a impressão de que os meus sonhos, pensamentos e rezas eram seres vivos, que viviam comigo ali na treva, que esvoaçavam junto ao meu leito, que pairavam sobre mim. E cada pensamento era um pensamento dele, cada sentimento também. Então ainda não sabia o que era amor, pensava que isto podia ser sempre assim e que este sentimento nos era dado gratuitamente". (Tolstói)



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