quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

2014

O relógio da praça do Rosário acabava de bater doze vezes. Sentada no alpendre da casa do meu avô, olhava para a rua deserta e ouvia o cantar dos passarinhos com paciência. Do portão para fora, o sol forte anunciava o primeiro dia do ano de 2014, que adentrava vigoroso por nossas vidas. Em frente à igreja, a praça e seus bancos antigos, doados por pessoas importantes da cidade em algum tempo perdido no calor do asfalto. Coisa interessante essa de ter a vida atrelada a uma cidade do interior – foi aqui que tudo começou. E quando digo tudo, penso nas histórias de minha mãe e meu pai, que viveram separados por uma esquina durante anos para se conhecerem em um banco da capital. Coisa interessante passar pela escola frequentada por seus avós, antes alunos, depois professores; seguidos de seus filhos, cheios de histórias guardadas na capanga de pano, entre cadernos e travessuras. Minha avó e todas as suas irmãs foram professoras orgulhosas de sua profissão – e depois dizem que vocação não se explica... Sentada no alpendre, lembrei-me com carinho da última semana. Uma visita à minha tia Branca, irmã de meu pai: quilos e metros de casos, fotos, detalhes de sua vida em família que talvez eu jamais viesse a conhecer. Visita à casa de minhas tias Iza e Lenita: Guarapan e pão-de-queijo. Andanças a pé pelo sol escaldante que parece brotar da avenida: biscoito de nata, biscoito de queijo, caçarola e sopa de galinha... açaí! Corei ao surpreender-me com as modernidades que provavelmente estão longe de serem modernas por aqui. Nos almoços em companhia de minha avó, casa cheia: família. Família e paçoca salgada, família e pamonha doce, família e milho cozido, linguiça de frango, salada da horta, feijão tropeiro que a dona do restaurante da cidade faz. Família com doce de figo que dá no quintal; goiabada mole feita pela vó de alguém, doce de leite da fazenda do vizinho, queijo fresco. Nunca pensei que faria tanto sentido saber de onde eu vim e para onde posso voltar se nada mais der certo, se houver alguma coisa sobre a qual eu precise saber. Essas memórias passavam pelos meus olhos como slides de um filme comprido, sem hora para acabar, quando irrompeu sobre elas a voz de minha mãe. Uma menina de doze anos foi estuprada na noite de Natal; o irmão de sete anos estava presente. Os pais haviam pedido que a menina e seu irmão fossem à venda da esquina, durante a celebração, para comprar qualquer coisa que estava faltando. No curto caminho, os irmãos foram atacados e levados a um lote vago. A menina está na Santa Casa sem previsão de saída; o irmão está em casa; os pais sentem-se culpados por terem exposto seus filhos a... uma tarefa trivial. O agressor – um homem de Belo Horizonte contratado para construir casas populares, com ficha na polícia – foi preso (onde? até quando?). Uma imagem mental se formou rapidamente: uma fumaça negra passando pelo trevo, resistindo aos buracos da estrada velha e avançando cidade adentro, sufocando sapos, grilos e passarinhos... obrigando avôs e netos a fecharem suas portas e ligarem a televisão. Nossos filhos não brincarão nas ruas por onde corremos, despreocupados como fomos nem tantos anos atrás. O sonho de um homem ridículo... sempre pensei na palavra humano como sinônimo de sensibilidade, de emoção, até de escrúpulo, sabe? Humanizar, humanista, humanizador... e você vem me falar em direitos humanos? Penso que temos opiniões diferentes sobre o que é ser humano. O ser humano é imperfeito, vá lá; mas ruim, ruim de tudo, desprovido de qualquer senso de limite? É como se a conta não fechasse. A noite de Natal em qualquer cultura é dia de ganhar presente, nem que seja de Deus. Em pouco tempo o almoço estava servido. Levantei-me da cadeira e deixei o alpendre sem coragem pra trancar a porta, sem entender como exatamente tocar a minha vida para que ela não seja tão pequena, tão minha... esperando que alguém me diga  para onde posso voltar se nada mais der certo, se houver alguma coisa sobre a qual eu precise saber.

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