sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Letramento conjugal

Eu disse que iria com ele; isso é um fato. Havíamos já há algum tempo estabelecido esse planejamento. Configuramos nossas vidas visando a acessar mais facilmente nossas atribuições dentro de uma concepção comum acerca do que vem a ser um relacionamento. Absorvia todas aquelas regras e pensava: Continue assim - isso é só um teste; você está indo bem. Desenvolvemos uma planilha de gastos mensais e outra de tarefas domésticas, mais um cardápio semanal com os nutrientes e calorias necessários para uma vida, digamos, sem muitas emoções. Investigamos por um período aproximado de seis meses qual seria o animal de estimação mais adequado para as dimensões exatas de nosso apartamento - os resultados foram inconclusivos. Estabelecemos um plano de ação que abarcava atividades a serem realizadas dentro de nosso tempo livre, que fora calculado com precisão de forma a otimizar horários vagos em comum. O coito era programado para atender às necessidades fisiológicas e reprodutivas simultaneamente. Os vícios foram erradicados com o objetivo de aumentar o valor das parcelas do financiamento imobiliário, e atividades remuneradas esporádicas foram incorporadas à rotina a fim de alimentar o fundo de pensão, o de reformas eventuais e o de viagens de fim de ano. Criou-se um mecanismo sólido, acima de qualquer suspeita - e a máquina ia girando sem grandes atribulações. Ao antecipar qualquer tipo de problema, meu marido não fazia economia: adquiria o óleo mais sofisticado e sem demora lubrificava o segmento que começava a dar sinais de ferrugem ou descarrilhamento. Essas pequenas extravagâncias serenavam meus anseios por um momento, e no próximo já havia uma série de outras atribuições a serem cumpridas. A disciplina organiza o tempo produtivo e otimiza o tempo ocioso em torno do trivial. Falta-me, por conseguinte, embasamento para compreender o motivo pelo qual vive-se de maneira total e completamente diversa. Ah, mas isso é história para outra história. Eu disse que iria com ele; isso é um fato. Vesti minha melhor roupa, escovei os cabelos e usei o perfume mais apropriado para a ocasião. À porta da rua, senti-me indisposta, o que não constituía motivo relevante para uma recusa de acordo com nosso código de conduta. Tirei os sapatos, gritei, rasguei as roupas caras que envolviam meu corpo saudável, perfumado, macio, intacto... subi as escadas. Mergulhei na banheira quente e aguardei que ele chegasse com uma xícara de chá e uma dose de calma. Em poucos minutos ele trouxe o chá e a calma. Sentou-se ao meu lado e tirou do bolso um frasco conhecido. Olhou-me nos olhos com ternura e tomou metade dos comprimidos; eu o observava em silêncio. Sem dificuldade, cumpriu aquela última tarefa com a classe que nunca haveria de abandoná-lo - estendeu-me o vidro. Eu disse que iria com ele; isso é um fato. Havíamos já há algum tempo estabelecido esse planejamento. Ele entrou na banheira com meu terno preferido e abraçou-se ao meu corpo trêmulo. Ficamos ali, eu a afagar seus cabelos descoloridos pelo tempo, enquanto ele gradualmente empalidecia, não sei se pelo medo da morte ou por cogitar a ideia de que eu não o faria. Ainda que os anos tenham tecido uma colcha pesada sobre minha memória, lembro-me desse dia com bastante clareza.

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