quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O pé de estrela

... mesmo assim ela foi. Queria ver com os próprios olhos. Carregava aquela esperança digna de ser transformada em algo verdadeiro, como num passe de mágica. Com uma olhadela alcançou as horas, e lembro de ter pensado alto que aquele calor todo não combinava com a ocasião. Quis montar em sua bicicleta velha e sair pelo mundo, mas a bicicleta não existia mais, e as ruas eram agora muito menores e mais estreitas que naquele tempo. Sua cabeça doía de culpa, e só ela sabia por quê. Pensava em Tiana. Burra, como era burra! Como pode você ser tão burra assim, meu Deus? Chorou sem querer, e se zangou com o fato de que  aquela dor não passaria... 

Tiana era analfabeta e havia crescido numa fazenda. Aos seis anos foi trabalhar em casa de meus avós, junto com a mãe. Fazia de tudo, e logo logo anunciou que poderia cuidar da casa sozinha. Anos depois viemos a saber que Tiana havia assumido toda a responsabilidade da casa para que a mãe voltasse aos dias de pinga e solidão na roça - não queria que os patrões a vissem embriagada dia e noite com cachaça emprestada. Era boa demais, tão humilde que dava raiva, aflição. Tudo estava certo, tudo era justo. Coitada da Tiana, era o que todo mundo se dizia, o que todo mundo pensava quando ela surgia. Ela só sorria. Um belo dia, trouxe uma amiga da capital para passar férias. Ruiva, olhos claros, sorriso brilhante. Até eu acreditaria no que ela dizia, bela e travessa bonequinha russa. Logo se interessou por Tiana, e já no primeiro dia afeiçoou-se a ela. Contava suas peripécias, fazia-a rir como criança. Tiana um dia perguntou emocionada se ela era um anjo do céu.  Você já foi ao céu, Tiana? Tiana corou. Uai, mas não tem jeito, não, tem? Como não tem? É claro que tem! É só plantar um pé de estrela... Tiana olhava curiosa para aquele anjo e pensava que ele estava lá pra mostrar o caminho das cores e das crianças. Meio ressabiada, perguntou como se plantava esse tal pé de estrela. Muito fácil: todos os dias, antes de dormir, faça uma oração e pegue uma estrela do céu com a mão. Coloque-a na terra e regue com água pura. Quando você plantar a milésima estrela, feche os olhos e aperte-os com força por alguns segundos. Ao abrir os olhos, o pé de estrela vai aparecer na sua frente. Suba no lugar mais próximo do topo e agarre-se a ele com toda força. Daí para o céu é um pulo. Os olhos de Tiana brilhavam, ela não conseguia dizer nem essa nem aquela palavra. Desmente isso aí, Usha - Dores é terra de gente que acredita. Não liga pra ela, Tiana - é uma boba. Puxei-a pelo braço.Tiana riu-se e foi cuidar do serviço. 

Mil noites depois, lá estava ela. Dos cabelos saíam estrelas; dos olhos claros pingava  água pura. Tiana havia pulado do último andar do prédio mais alto que nem era tão alto assim; sendo velhinha, não resistiu aos ferimentos. O sol brilhava forte como num dia de carnaval. Te amo, Tiana. Te amo, sua velha boba. Corria em direção à casa e esperava que chovesse. Esperava que a água fria lhe lavasse a alma. Esperava que Tiana a olhasse com ternura e lhe sorrisse com a timidez de quem nunca soube como seria mais bonito. Fechou os olhos, apertou-os com força e esperou ver Tiana lá em cima do pé de estrela, subindo aos céus dentro da mão de Deus, enquanto a multidão incrédula  acreditava presenciar um milagre. Por mil outras noites ela plantou estrelas e, com a fé de quem fica, esperou. Tiana não abriu os olhos e a chuva não caiu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário