quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Doe a quem doar

As pessoas de forma geral entendem que cortesia e gentileza dentro de casa são itens opcionais no cardápio do dia-a-dia. Atenção: não é uma boa ideia ser gentil e cortês em família - é uma regra. Por muitos anos compartilhei a vida com um cara que bancava todos os sonhos dos pais. Em outras palavras, se a mãe dele ligasse às 5 da manhã pedindo pra ele capinar o jardim e construir uma piscina no lugar, lá estava ele. Voltava no fim da tarde sujo, suado, mãos escalavradas, sorriso no rosto e muitas novidades. Estranho seria se eu quisesse por uma semana sequer me relacionar com alguém diferente. Tem muita gente achando que trata os pais e irmãos com carinho sem bancar os sonhos, sem colocar a mão na massa. Dá um beijinho na testa no fim de semana, agradece na frente dos amigos pelo exemplo de bravura e superação... e está sempre muito ocupado para ouvir, para ajudar. É o momento de construir um império, você pensa com seus botões. É a forma de compensar o esforço dos velhos, você se justifica e conclui com seriedade e certeza que ter condições materiais para, entre outras coisas, ampará-los durante a velhice vai compensar a sua ausência ou o fato de você tê-los taken for granted (essa expressão inclusive é tão boa no que ela quer dizer que ainda não consegui achar um correspondente à altura na nossa língua). Se você negligencia ou destrata seus pais POR QUALQUER MOTIVO, ainda existem coisas bem grandes pra serem revistas aí dentro. Coisas de você com você. Fazer trabalhos voluntários e não arrumar a própria cama, carregar quilos de alimentos não perecíveis pela estrada afora e deixar que sua mãe carregue as compras do supermercado não é coerente. Visitar velhinhos doentes e deixar que seu pai envelheça sem cuidado ou afeto em um lugar que não te interessa é, no mínimo, intrigante. Aprendi um dia que quando se aponta um dedo para alguém, os outros quatro estão apontados pra você. Ainda assim, agora, do alto dos meus 35 verões, saio na rua e vejo uma preocupação tão exacerbada com o EU que me enjoa. É necessário que se entenda que sim, todo mundo que tem dinheiro é bonito hoje. Os procedimentos estéticos e recursos da cosmética atual têm homogeneizado a pele, o cabelo, peitos, bunda, pernas, braços, sorrisos. As roupas têm insistido em mostrar mais até do que se espera ver. Perde-se, assim, o espaço para a imaginação, a cortesia, o amor gentil, a vontade de conhecer, de caminhar rumo à intimidade sem pressa, de ser ao invés de estar. Hoje as pessoas se conhecem e se curtem por foto; hoje foto é tirada de qualquer jeito em qualquer lugar. Online todo mundo tem assunto, tem coragem, tem frases feitas pra tirar do bolso. O especial pede passagem sem sucesso... Já tem livro ensinando a arte da conquista e as pessoas compram sem nem parar pra pensar que a conexão que se pauta no estético, no efêmero, na estratégia dificilmente levará a um encontro de almas, de valores, de transparência e tranquilidade afetiva. Que nesse ano que se inicia tenhamos saúde para organizarmos o tempo de um jeito que possamos compreender o que realmente gostaríamos de receber. Só assim poderemos nos doar de forma pura, leve, indolor e linda de tão singular.

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