quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Capítulo 18: Que rei sou eu?

Pois é, gente, acho que não podia continuar essa saga sem tocar em um ponto muito importante - talvez o mais importante pra mim. Antes de viajar, digamos que minha vida não estava lá aquela maravilha em nenhum quesito. Com isso, só precisei de um email da minha amiga Marina, que já se encontrava do outro lado do oceano, pra mergulhar de corpo e alma nessa empreitada. Como minha amiga estava um bocado ocupada por lá - e só quando cheguei em Londres vi que não há realmente outra opção viável - resolvi ir a uma agência especializada pra agilizar tudo. Escolhi bem. A primeira pergunta que me fizeram ao chegar foi: o que exatamente você quer fazer em Londres? Estudar e, se possível, trabalhar também. Fácil, né? As respostas sempre na ponta da língua. Você é professora de inglês... o curso seria nessa área? Não queria fazer nada nessa área, tinha passado os últimos três anos estudando o ensino da língua inglesa e suas maravilhas. Queria mesmo fazer um curso de literatura, bem gostoso, que desse asas à minha imaginação e quem sabe até me fizesse voltar a escrever, hábito que havia abandonado pela pura e simples falta de inspiração. Queria conhecer a terra de tia Beth, ver de perto lugares e pessoas que só conhecia pelo Google e pela televisão. Queria saber das coisas pra contar pros meus alunos "isso é verdade, mas aquilo lá é a maior balela que eu sei". Acima de tudo, queria viver uma outra vida pra dar valor à minha. Queria dobrar minha situação atual com cuidado maternal e guardá-la dentro de uma gaveta bem quentinha, dizer pra ela "peraí que mamãe vai ali e já volta" e entrar numa bolha mágica que me levaria a um mundo louco e desconhecido... OK, desce da nuvem e vem contar a história, Amâncio! Foco... O problema é que precisava de um curso de três meses, e os cursos de literatura duravam duas semanas. Oops, flashback: como Marinão - apelidos de faculdade reinam! - iria ficar em Londres até dezembro e eu teria que trabalhar até julho, meu plano era ir em agosto, fazer um curso de três meses pra poder trabalhar também nesse período, e viajar pelas redondezas no quarto mês - coitada... pessoas tapadas também têm o direito de fazer planos, mesmo que eles estejam predestinados a dar errado dada a estupidez de sua natureza. Flashforward: no pounds = no trip WHATSOEVER. Acabei encontrando um curso de Business English, que se encaixou muito bem nas justificativas necessárias para minha viagem. "É uma área em crescimento no Brasil, o curso será muitíssimo favorável para minha carreira, contará muitos pontos no meu currículo", e por aí vai. Pedi pra ficar num bairro legal - consegui uma escola e uma casa na região de Hampstead, um lugar sensacional! - e já fui dando entrada no processo. Tudo que eu tinha que fazer era sair dali, deixar aquela menina belo horizontina atleticana professora de inglês aspirante a bailarina namorada do Bruno bem mal-humoradinha de molho por um tempo. De repente ser eu já não era mais tão interessante. O mais interessante, por outro lado, foi perceber como as coisas se desenvolveram rápido. Anunciei meu carro e vendi em menos de uma semana. Recebi meio salário extra na festa de fim de semestre do trabalho, fui pro Rio tirar o visto e consegui minha permissão de trabalho sem problema. Em um mês estava com tudo pronto. Quem não botava fé - no caso todo mundo que eu conhecia - horrorizou. A ficha da minha mãe só caiu quando eu liguei pra ela de lá. Meus amigos acho que pensaram que eu tava logo ali e voltava já. O Bruno me deu muito apoio e sofreu uma arritmia cardíaca um mês depois da minha viagem, em setembro. Coincidência ou não, foi muito punk encarar essa sozinha, com pouca grana, na casa de Madame Satã e pra completar me recuperando de uma gripe devastadora. Fico falando da casa de Madame Satã como se tivesse sido o próprio pesadelo, mas ela foi providencial em vários aspectos. Ao fechar o contrato, me matriculei na escola, paguei as passagens e me perguntaram se eu gostaria de fechar também um tempo de acomodação. Paguei por quatro semanas, tempo a meu ver suficiente pra conhecer outras pessoas na escola e conseguir uma acomodação mais barata, e esse foi um dos meus pouquíssimos insights positivos. Foi minha salvação. Meus três amigos que estavam em Londres - Marinão, Germano e Leo - moravam cada um em um lugar diferente, todos longe da minha escola, e todos no apertamento, dividindo a casa com um mulão - o Leo que o diga. Sabia que se a coisa apertasse eu poderia me apertar com eles, mas num lugar maluco como essa cidade, mais um é tipo mais quinze preocupações. Com Madame Satã, eu tinha um café da manhã e um quarto de princesa só pra mim, com uma caminha bem gostosa e bem quentinha. Isso, claro, sem falar dos meus amigos singulares Lucy, Katerina, Olivier e Andrea. O único problema, além do preço, era o fato de só haver um banheiro pra umas sete pessoas. Detalhe pessoal: de 7.00 às 7.30 o banheiro era de uso exclusivo da "família", como já dizia um dos bilhetinhos nazi. Eu faço xixi o tempo todo. Mesmo. Não sei por quê, mas é assim. Vou ao banheiro umas quatro vezes por noite. Isso significa que diariamente eu passava mal nesse horário. COMO É QUE VOCÊ VAI SE PROGRAMAR PRA FICAR UMA HORA INTEIRA SEM FAZER XIXI? Depois ainda teve o lance da "falta d'água direcionada", mas isso foi bem mais adiante. O importante é ressaltar que garantir uma moradia antes de ir não é só uma tranquilidade a mais - é crucial enquanto você se adapta à cidade e vai se inteirando sobre o necessário. Em meio a algumas sacadas inteligentes e diversas idéias muito furadas, agilizei minha viagem. Só queria sair, respirar outro ar, ser outra pessoa por um momento, tão sufocada eu estava pela minha própria mediocridade. Depois de tudo pronto, pago e decidido, o consultor educacional, um cara extremamente tranquilo e sensato, sentou-se comigo pra dar algumas dicas finais. Ele me explicou sobre o Oyster, sobre a cidade, me contou a sua experiência. Falamos sobre possíveis empregos, currículo, atrações e curiosidades. Senti que ele estava guardando a pérola para o final da conversa. Com a mesma postura tranquila e sensata, ele me disse uma coisa que poderia até ter soado meio clichê, se não tivesse me tocado tanto e tão profundamente. O recado foi simples: não se esqueça de quem você é. Num outro ambiente, tão diferente do nosso, onde ninguém nos conhece, a gente pode se reinventar, ser o que quiser. A gente entra de cabeça naquele mundo de sonho, de fantasia, e um dia não entende mais o que é verdade, não se lembra mais do que ficou naquela gaveta quentinha. Sei que há os que almejam exatamente isso, mas não eu. Eu queria voltar. Queria parar em frente à gavetinha e tocá-la com sabedoria. Queria ter a chance de refletir sobre quem eu era, e fazer de cada episódio uma oportunidade de ser melhor para mim e para o mundo à minha volta. De coração. ... Percebi naquele momento o meu objetivo, e não me esqueci. Chorei quando tive vontade, caí e me levantei quando deu pra levantar, quando achei que era hora. Ouvi muito, recebi todos os tipos de afeto. Convivi com pessoas que me ensinaram tanto... Aprendi que aprimorar é uma palavra dura, tão contínua quanto incompleta, profunda e rasa. Cega, enfurecedora... ingrata de tão plausível. Diária. Peguei o pó do que aprendi e soprei dentro daquela mesma gaveta. Tirei de lá a colcha da minha essência e ela brilhava. Sabia que havia o risco daquele pozinho se soltar aos poucos, desprender-se de mim a cada lavagem. Fiquei feliz; certa de que o que permanecesse tornaria-se evidência de um ser em constante evolução. (Diga-se de passagem, a minha voz continua a mesma, mas as minhas viagens... quanta diferença!) ;) A presto, amici!

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