quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Big Bang

Quando pequena, passava horas a fio a observar as nuvens, deitada na grama ou indo e vindo no balanço. Fazia perguntas imaginárias apertando meus olhos quase pretos no breu do dilema e, ao abri-los, ia esperando o céu se organizar e desenhar a resposta. Talvez assim tenha desenvolvido na minha cabeça um certo tique por sinais, uma mistura de fé com insanidade (mais tarde vim a saber que Dostoiévski já tinha misturado Jesus com Dom Quixote lá no século XIX e fiquei feliz). Esse meu conversar com Deus em horas tolas, esse meu abrir o peito pra sorte trouxe reflexões solitárias, duras, e vivências viciadas num perder que foi ganhando forças, tirando das minhas entranhas toda a minha sede de ser, extraindo todo o meu poder de viver essa minha história tão bonita. Não deixe o outro te moldar, você pensa. Os tempos são outros, você pondera. Pra onde vão essas pessoas que não aprenderam a lidar com a tecnologia em pleno 2022? As que trabalharam 25 anos de um jeito, que desenrolaram suas vidas, fizeram planos, tiveram sonhos em preto e branco, numa câmera fotográfica em que precisaram saborear o making-off pra escolher o take perfeito, aquele que registra em uma imagem todo um tempo feliz? Pra onde vão as pessoas que têm medo do escuro de si mesmas, do escuro que é um completo desconhecido, do escuro de um coração e de uma cabeça cheios de vivências viciadas num perder que foi ganhando forças, tirando das entranhas toda a sede de ser, extraindo todo o poder de viver essa história tão bonita? Pro olho da rua da sociedade ou... em uma jornada fantástica rumo ao magma de seu próprio planeta. Sem mas, você se despe. Tira peça por peça na frente do espelho. Repara em tudo com olhos serenos, gentis. Ri pra uma ruga, passa as mãos pela barriga, pelos seios. Checa o formato dos pés, das mãos, das unhas, percorre sua própria pele devagar, tato trôpego e etéreo... se abraça. Observa o peso das pernas segurando o corpo e agradece - elas estão ali, fortes. Atravessa os dedos pelos cabelos, fecha os olhos de prazer. Sente de olhos fechados cada parte do seu rosto, em pé, em silêncio, em comunhão com o tempo e o espaço que criou para ser você. Abre os olhos e sorri - o escuro não aflige mais. O tempo comum não te machuca; o espaço não te exclui, nem te sufoca. Não interessa o que vai acontecer amanhã, se existe vida fora daqui ou como surgiu a Terra. Nesse fundo azul onde as nuvens falam mais alto, eclodimos pós-Big Bang como flores novas num jardim primaveril, alheias à fúria do mundo, aos traumas da guerra.

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