sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Conto do Abílio

Tinha medo. Não sabia se era só uma transa ou se rolava sentimento. Tentava levar numa boa, dizia pelos cantos que não misturar as coisas era uma iniciativa sua. Saía pela noite e pensava nela, mas não podia se abrir. Quem é que iria entender? Não queria nada daquilo, havia educado seus instintos para entregar-se a alguém completamente diferente. Ela era linda, o que era aquilo... Cheirosa, macia - um querer absolutamente infundado. O que seus amigos iriam dizer, como as pessoas iriam responder a toda aquela miscelânea? Olhava-se no espelho, convencia-se de que sua missão no mundo não era a de casar e ter filhos. Chorava no chuveiro - tinha que esquecer, não era uma questão de escolha. A confusão virava-lhe os olhos, pinçava o nervo ciático. Virar folha naquela altura do campeonato já não fazia sentido. Ponderava e bebia, sentia-se angustiado pela pressão que havia colocado em si próprio. Considerou viajar pelo mundo, levá-la consigo, viver uma vida que ninguém julgasse. Ouvia músicas e em pouco tempo estava faminto de desejo. Ela parecia não se importar nem um pouco com a situação - muitos diriam inclusive que ela mal sabia o que se passava do outro lado da linha. Ele esperava, ela ligava, eles se viam, se sentiam, suavam, sorriam... respiravam... se despediam. Como conviver com esse trauma? Ele marcava médicos pra ver a dor de estômago, a mudança na urina, a dor de cabeça, as taquicardias, as urticárias. Ela ligava e dava risadas, contava piadas, brincava com sua hipocondria, sempre natural, sempre a saber notícias. Uma amiga. Amiga? Amiga ou PF? Amante? Possibilidade? !@#$%¨&*!!! Um dia ele conversou longamente com um psicólogo em um jantar. O profissional, de forma tranquila e pontual, assinalou em seu comportamento uma discrepância singular. "Olha, eu já conversei com muita gente, Abílio, já vi muita coisa, mas é a primeira vez que alguém me fala que está encontrando dificuldade para manter-se gay. (...) Faz o seguinte: já que a questão com a garota é complicada pra você, porque parece que está havendo um certo envolvimento, só tem um jeito: coloque as cartas em cima da mesa, fale o que você sente. Como ela está a fim de curtição, é natural que se afaste. Vai doer no princípio, mas você vai se safar da maneira mais tranquila. Confie em mim." Aquele camarada era a chave de cadeia em pessoa, o bigodinho oleoso nas pontas assinava o diploma de cafa. Mas não é que ele tinha razão? Será? Não esperou muito. Ela ligou, ele marcou, lá ela estava. Ele a pediu em casamento; ela aceitou. Casaram-se logo: os pais adoraram, todo o resto estranhou. Reuniu os amigos e mencionou a pressão dos pais já idosos. Para a mãe, disse que havia se cansado de sofrer preconceito. Para o pai, disse que queria dar-lhe um neto. Para Raquel, contou do seu amor e confessou que, secretamente, a faria a mulher mais feliz do mundo. Ela riu, não disse nada. Em segundos lá estavam, emaranhados nos lençóis pela milésima vez.

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