Esse ano foi duro. Difícil. Novo. Diferente. Desafiador. Recompensador. Doído. Nu, doído. Doido. Imprevisível. Introspectivo por vezes, coletivo meio inesperado. Esse ano me ferrei, me achei, sofri, chorei, pensei... chorei mais; chorei mais, não. Esse ano tive que escolher milhões de vezes, decidir com a convicção que nem sempre estava. Fui firme, fui filme de ficção, de terror, de heroína, de pescador, fui feto e fui fato, sim senhor. Esse ano foi martírio, redenção, aprendizado, reconexão com quem veio e quem quis ficar, onda de luz cósmica pra quem não foi e não esteve, pra quem quis partir, pra quem quis chegar. Esse ano foi fé raciocinada, Tim Maia Racional, sangue no olho, faca na caveira, chute no estômago e cara na porta. Cara na porta. Cara na porta até ela abrir e eu ver mamãe, irmãs, sobrinhos, amigos, alunos, lições, tarefas, meu pai tímido do outro lado da sala e meu coração num ratimbum descompassado, doido pra agradecer pela minha vida com um beijo e um abraço de obrigada, pai, porque hoje eu sinto o seu amor, porque hoje eu tenho amor por quem me ama e quem me critica, por quem me guarda e quem me prejudica. Esse ano foi amor e caridade, redenção e saudade. Foi o primeiro ano da minha vida em que o Natal foi o dia de celebrar Jesus e tudo que ele me ensinou sobre família, amigos, afetos, gratidão, gentileza, perdão, contribuição com o bem maior, responsabilidade, leveza, fluidez no caminhar, sempre e lentamente. Esse ano foi plantio em chão despreparado, e cada galo, cada roxo, cada tombo, de um jeito estranho e não calculado, foi um presente.
Esse blog é destinado a compartilhar viagens literárias, e está aberto a seres humanos e afins... Divirtam-se!
sábado, 31 de dezembro de 2022
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
Big Bang
Quando pequena, passava horas a fio a observar as nuvens, deitada na grama ou indo e vindo no balanço. Fazia perguntas imaginárias apertando meus olhos quase pretos no breu do dilema e, ao abri-los, ia esperando o céu se organizar e desenhar a resposta. Talvez assim tenha desenvolvido na minha cabeça um certo tique por sinais, uma mistura de fé com insanidade (mais tarde vim a saber que Dostoiévski já tinha misturado Jesus com Dom Quixote lá no século XIX e fiquei feliz). Esse meu conversar com Deus em horas tolas, esse meu abrir o peito pra sorte trouxe reflexões solitárias, duras, e vivências viciadas num perder que foi ganhando forças, tirando das minhas entranhas toda a minha sede de ser, extraindo todo o meu poder de viver essa minha história tão bonita. Não deixe o outro te moldar, você pensa. Os tempos são outros, você pondera. Pra onde vão essas pessoas que não aprenderam a lidar com a tecnologia em pleno 2022? As que trabalharam 25 anos de um jeito, que desenrolaram suas vidas, fizeram planos, tiveram sonhos em preto e branco, numa câmera fotográfica em que precisaram saborear o making-off pra escolher o take perfeito, aquele que registra em uma imagem todo um tempo feliz? Pra onde vão as pessoas que têm medo do escuro de si mesmas, do escuro que é um completo desconhecido, do escuro de um coração e de uma cabeça cheios de vivências viciadas num perder que foi ganhando forças, tirando das entranhas toda a sede de ser, extraindo todo o poder de viver essa história tão bonita? Pro olho da rua da sociedade ou... em uma jornada fantástica rumo ao magma de seu próprio planeta. Sem mas, você se despe. Tira peça por peça na frente do espelho. Repara em tudo com olhos serenos, gentis. Ri pra uma ruga, passa as mãos pela barriga, pelos seios. Checa o formato dos pés, das mãos, das unhas, percorre sua própria pele devagar, tato trôpego e etéreo... se abraça. Observa o peso das pernas segurando o corpo e agradece - elas estão ali, fortes. Atravessa os dedos pelos cabelos, fecha os olhos de prazer. Sente de olhos fechados cada parte do seu rosto, em pé, em silêncio, em comunhão com o tempo e o espaço que criou para ser você. Abre os olhos e sorri - o escuro não aflige mais. O tempo comum não te machuca; o espaço não te exclui, nem te sufoca. Não interessa o que vai acontecer amanhã, se existe vida fora daqui ou como surgiu a Terra. Nesse fundo azul onde as nuvens falam mais alto, eclodimos pós-Big Bang como flores novas num jardim primaveril, alheias à fúria do mundo, aos traumas da guerra.
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
Momentum
Momentos são angústias; fragmentos de astúcia, paz e caos... momentos são minúcias. Detalhes do que vemos nos guardam em segredo; segredos de outrora se guardam em degredo... fluímos cheios de intenções, a plenos pulmões - corações cheios de medo. Não é isso que Deus quer pra nós: uma mesa pra ceiarmos sós, uma vida sem calor de pai, uma cama sem uivos nem ais, um enlace cruel, atroz; Ele quer é casa com jardim, girassóis, canários, querubins, nãos bonitos pra chamar de sims... um sonho feliz, um amor feroz. Essa vida que me pertenceu, essa noite que me amanheceu vem me cumprimentar; te imagino sob a luz solar, me arrisco, mudo de lugar e ainda sou eu, sempre a duvidar do que vai ser... ansiosa por sentir o poder da fé, da promessa, do toque, do nosso axé, do dia que ainda não se vê. Somos filhos do ontem; pagamos, sofremos nós, filhos do homem, buscando no céu o que não é de lá, querendo colo sem que nos domem, sem que nos tomem de assalto com afeto e zelo... querendo sem pensar em dar. Os planos vêm pra agradecer; os anjos vêm pra obedecer à sua resignação e ao seu impulso - que o livre arbítrio seja o norte de quem crê, de quem tem pulso pra recomeçar, pra se refazer de um salto. A alma vai permanecer, o amor há de prevalecer e os momentos, minúcias de sonho, de sentimento, serão lágrimas brilhantes de enternecimento pelo nosso voo mais alto.
domingo, 30 de outubro de 2022
Dost thou know I love thee?
O ano era 2003. Pausa. Não sei quantos anos eu tinha quando comprei alguma coisa numa loja cara, daquelas pelas quais eu passava de cabeça baixa pra não ter vontade de entrar. Que sonhos são esses vendidos pelo capitalismo... Que loucura é essa de comprar dignidade, integridade, status, de comprar a próxima desculpa que você vai usar pra tentar se convencer de que está fazendo a coisa certa enquanto aquele aperto no peito te responde só que não? Fui ao centro espírita essa semana e meu mentor me disse que eu me encontro numa frequência de expiação, de pagamento de dívidas - e quem sou eu afinal pra chorar, espernear e achar que já paguei muito mais do que deveria? Eu, uai. No auge do meu desespero, ouvi dele que o desespero é bom, chama o fim da prova. Em meus momentos de desequilíbrio me considero bem dostoievskiana, naquela impáfia do só se vive uma vez, correndo perigo, me arriscando ao passar um cartão que vou suar pra pagar, só pelo gostinho de não ser medíocre, de permanecer inrotulável, de me surpreender - veja você que looping... Olho pra minha casa, pras coisas materiais que consegui, pro fato de gastar mais do que eu ganho como uma compensação pelo fato de não ter ninguém pra deixar nada quando eu me for mesmo tendo desejado tanto uma Alice e um Romeu plantando bananeira e dando estrela no quintal... Olho pra trás e me pergunto se eu ferrei de vez a minha vida ao sair de casa sem olhar pra trás ou se aquilo foi o marco inicial dessa história de lutas, dívidas e aprendizado que eu invariavelmente teria que viver. Ééééééééé... a vida não tem replay. O Cazuza disse que adorava um amor inventado, e só entendi isso quando, após um período amargo de luto não finalizado, cansei de tentar esperar a chuva passar e tentei fazer o mesmo. Parece estranho e até cínico, mas não é proposital nem deliberado. A gente quer amar, então surfa na onda de quem está ali disposto. A gente curte a companhia e fica até feliz, mas sabendo que, diferente de companhia, companheiro é outro departamento. A gente se joga porque tem medo de passar a vida procurando por um brilho no olho, um coração batendo acelerado, um transe, uma dormência, uma paz inexplicável em caber num abraço, em se despir sem pudor nenhum, em unir bocas e se enlaçar naquele corpo quente e sedento pelo seu... em fazer carinho e falar de sentimento de um jeito aberto, bonito, direto e rir junto, e rir antes, durante e depois, e rir ao lembrar de tudo isso e chorar de emoção. Pausa. O ano era 2003. Namorava há um ano com a pessoa que passaria mais 11 anos do meu lado. Cursava Letras/Inglês e as disciplinas de literatura eram simplesmente arrasadoras - nessas horas agradeço sinceramente pela minha oversensibilidade - eu sentia tudo! Amava decodificar o inglês arcaico e todo o romantismo ensandecido que ele carregava nas costas. Numa dessas viagens literárias apareceu a frase "Dost thou know I love thee?" - ela virou o nosso eu te amo na terra de dragões e gigantes, príncipe e princesa que sonhavam, cada um à sua maneira, com paz no castelo. Não nos falamos - presente do indicativo. A relação acabou, o sentimento se transformou, mas esse ressentimento que ficou do outro lado impediu o contato. Às vezes me pergunto: vai passar? Vou ter que esperar essa chuva toda cair pra sair na rua? E se eu quiser me molhar, será que alguém vai surgir em pé na esquina com um sorriso, um guarda-chuva e vontade de me aninhar? O ano era 2003 e agora, quase 20 anos depois, ainda ecoam os erros, os acertos, as investigações, decodificações, paranoias e mitos que o E se? tentou plantar aqui dentro. O capitalismo, o consumismo, o alcoolismo, tudo isso é explicável e previsível - queria que amar desse jeito certo, com lacunas e renúncias, também pudesse ser.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
(R)evolução
Com a atual conjuntura do país, tenho pensado muito sobre o velho clichê – não menos importante por ser um clichê, contudo – “seja a mudança que você quer ver no mundo”. Não consigo entender por que as pessoas têm plantado ódio – e esperado – pasmem – colher amor. Christian Gurtner, autor do fantástico podcast Escriba Cafe, recentemente me presenteou com uma reflexão do filósofo escocês Adam Smith: “A ambição universal do homem é colher o que nunca plantou”. O que é que você vai fazer se o seu time não ganhar? Se domingo chegar e seu candidato não for eleito? Espero que algo diferente de torcer pro país se lascar e se contorcer de prazer quando algo der errado com um sorrisinho estampado de “eu te disse”. Tem muita coisa errada nesse governo, teve muita coisa errada nos anteriores e é preciso admitir – mas o que realmente precisamos assumir é nossa reponsabilidade enquanto criaturas habitantes desse enorme pedaço de terra e planta e gente e coisa chamado NOSSO país. O que você fez nesses últimos quatro anos em prol do seu semelhante? Reflita sobre isso com consciência. Além de reclamar e se desesperar como quando seu time perde um pênalti, além de compactuar com um gol roubado porque foi seu time que fez – porque afinal ele precisava do gol pra vencer – você ajudou alguém material ou moralmente? No espiritismo falamos em caridade moral, que, diferentemente da material, envolve empatia, escuta atenta, compreensão e respeito às diferenças, comunicação não-violenta, lealdade, honestidade, verdade – cuidado. Como sempre, vejo-me num ir e vir quando se trata de tais virtudes: a gente prega, mas dificilmente a gente faz. Dói em você quando se dá conta? Tem doído em mim cada vez mais, e cada vez mais tenho pedido força e coragem pra enfrentar meus próprios dragões e usar minha existência e minha posição nesse mundo pra de fato tentar ser menos vil, menos egoísta, menos intransigente: pra servir. Dói sair do sofá pra correr por uma hora seguida. Dói deixar alguém que você ama para que alguém que te ama possa te encontrar. Dói deixar uma vida, uma persona pra trás e junto com ela sonhos baseados no que você achava que te completaria, dói calçar aquele sapato lindo que te servia e agora só te machuca. Aos olhos de alguns, já fui mais interessante; aos meus, tento conter a angústia e a alegria de me moldar ao que realmente me pertence com trabalho, com perseverança, com a compreensão de que as palavras são fruto do pensamento e adubo para cada uma de nossas ações. No primeiro turno das eleições fui votar com um vestido branco e uma flor no cabelo – no peito a frase Vibre amor. Foi triste ver o olhar reprobatório de algumas pessoas, que associaram minha mensagem e minha luz ao comunismo que vai nos transformar na próxima Venezuela (!). Uma delas não se conteve e gritou do carro “vai pra Cuba, comunista!”. A única bandeira que eu carregava era a de paz e amor – sem bottom, sem camisa, sem cor, sem panfleto – e ela gerou ataque de pessoas que eu desconheço. Como bem pontua Krenak em A vida não é útil, “nós, seja na floresta, seja em um apartamento, precisamos despertar nosso poder interior e parar de ficar caçando um culpado ao nosso redor: uma corporação, um governo. Porque essas coisas todas acabam e nós não podemos ter uma data de validade igual à delas”. Mais amor por favor – a todo mundo que deseja de fato ver um país onde seu umbigo venha depois, um lugar onde todos possam ter os direitos fundamentais garantidos, onde todos nós nos mobilizaremos contra a fome, a miséria e a numeralização em detrimento da pessoização. Sem essa esperança somos somente um bando de almas perdidas plantando revolta e esperando lunaticamente por prosperidade e redenção.
domingo, 9 de outubro de 2022
24 horas
Há pouco tempo, entre lágrimas contidas e sorrisos abertos, vi, em meio às várias maravilhosidades de um filme sensível e sincero, uma espécie de brinde às próximas 24 horas - um compromisso firmado, uma responsabilidade, uma esperança. A gente cresce se propondo planos tão mirabolantes pra um futuro indefinido e se esquece que o futuro segue abraçado ao presente a passos descoordenados, que o que acontece geralmente chama o que está por vir. Somos o que escolhemos ser, todos os dias, seja por comodismo, pertencimento, medo ou esforço. Pode ser que amanhã você mude de ideia, decida ter outra vida, outra cor favorita, outros sonhos pra chamar de seus. A mágica está justamente nesse dia-a-dia, no sol que não se cansa de subir e descer, na lua que vai, bem humildemente, ocupando seu lugar entre as estrelas. Não tem projeto que não caiba quando você aprende a se ouvir, a SE pertencer. O resto a gente equilibra, absorve, experimenta, adota ou descarta. A vida é feita de nãos sonoros ao que nos separa da nossa estrutura, ao que nutre o orgulho e a vaidade em nós. O céu desaba mas a escolha por dias melhores e pensamentos mais edificantes segue insistente, por mais um dia, e mais um dia, e mais um dia... Pelas próximas 24 horas escolha quem te acompanha, decida a nova tatuagem, o corte de cabelo, o próximo desafio... faça um pedido, peça a você mesmo em casamento e se prometa todo o carinho e a devoção que sempre sonhou em receber. Deixe o que é ruim, atraia algo bom, chore pra limpar o peito, renove seus votos, se acolha, se respeite, peça desculpas, agradeça com amor, com fé - RESISTA. Por mais 24 horas.
sábado, 24 de setembro de 2022
SENZA TE
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
ÉRIKA
Nowadays it seems to me that most people are scared of relationships because they can't risk feeling better and then maybe feeling worse - instead, they prefer being... OK. OK sounds steady, predictable, safe. For us, the ones in our forties, all the baggage, the misfortunes, the suitcases filled with frustration, anger and mistrust, all that makes us full of drama, untouchable, secured by a self-built wall called solitude - the pleasure of being me for myself, blind to wrongdoings. Days ago I was told that I am named after a German little flower, pinkish, kindish, low-profile. For some reason it became the protagonist of a beautiful song soldiers sang to their ladies back home during the war - honestly, less beers would have helped me remember the very interesting details in between, but cheers to us, who only live once ;). My mother told me she named me after the main character of a novel she had once read; sadly enough, there are no memories left besides the name itself. Regardless of the origin, the whereabouts and geographical coordinates which have brought me to this world, that is exactly what I was supposed to be called. I needed a short, universal and practical name that could take my misplaced soul to epic worlds and their layered dresses, their veils, their secret dilemas and desires, their jewels and long braids, their princes, kings, duels and songs and odes to impossible, enchanted, promised and exultant love stories... their curses, their karma - coincidence or circunstance? All I know is my tale would go like this: Invited to the ball more than once, she knows the whole dance by heart - courteous smiles, bows, glances and vows... midnight has long passed as she walks by with both crystal shoes swinging in her fingertips - no footprints left behind. Another night turns to day, a new path opens up along the way - not ordinary, not necessary: real, way far from OK.
sexta-feira, 19 de agosto de 2022
Comer Rezar Amar
Em 2018, minha querida tia Leléia teve um câncer na tireóide e eu fui a Brasília em janeiro para vê-la e visitar minha família. Para minha alegria, meu primo Leandro, que mora em Uberaba e eu não via há um tempão, também estava lá e já tinha agendado um horário com o Gustavo, tatuador famoso no Brasil inteiro por ser o mestre da caligrafia. Meu primo queria tatuar a assinatura do nosso avô no peito. Fui de curiosa, tomei umas e acabei saindo de lá com a palavra Attraversiamo na minha letra e uma pombinha no ombro direito (desenho e ideia dele a pombinha). O mais intrigante é que se você prestar atenção, vai ver que a pombinha meio que puxa a palavra com ela, como se quisesse alçar vôo pra fora do corpo - ou levá-lo pra um passeio que mudará sua vida para sempre. Foi o que o filme Comer Rezar Amar fez por mim. O ano era 2010. Tinha acabado de me casar após sete anos juntos. Passamos por algumas turbulências, vivemos nossa imaturidade dos vinte e poucos lado a lado e decidimos seguir o curso socialmente natural do casamento em cartório pra comprar casa, meiar as contas e ser dependente no plano de saúde. Logo eu, a última romântica, casei sem ter sido pedida em casamento, sem véu, sem buquê, sem saber se aquela era a melhor opção, mesmo amando a dupla e a companhia. No mesmo ano em que eu me casei, exatos oito meses depois, fui assistir a esse filme no cinema. Ao meu redor, caos: havia me tornado hedonista, egoísta, desejosa de toda e qualquer coisa que me anestesiasse e aplacasse a enorme solidão que eu sentia. Não foi culpa de ninguém, nem da nossa ingenuidade em acreditar que o amor seria suficiente. Acostumada desde a adolescência com a reportada semelhança com a Julia Roberts, foi ainda mais incômodo pra mim ver uma pessoa que até eu achava parecida comigo naquele papel, na angústia daquela busca, na dor que envolve toda mudança, no medo do desconhecido, na coragem desequilibrante de seguir em frente sem qualquer ideia de como há de se desenhar uma vida nova a partir de um minuto, de um dia, uma semana, um mês. A gente só sabe que tem que atravessar e vai, chorando, gritando pra ensurdecer o desespero, remando e olhando pra frente, mais magra, desbotada, cansada de procurar por cores em um filme concebido em preto e branco. Medo é combustível, adrenalina, força motriz das maiores reviravoltas - a vontade não dá conta sozinha, não. É o frio na barriga que te impulsiona, é aquela sensação pré-pulo na piscina, seguida do desconforto meio libertador no momento exato em que seu corpo inteiro entra em contato com a água gelada e a temperatura muda e o coração acelera pra, em seguida, você furar o teto com a cabeça e respirar e ver que a vida segue lá fora, e que tudo vai bem. Parabéns: você atravessou a onda de incertezas e agora já pode dizer com convicção que existe vida após uma decisão difícil - uma vida boa, com sol, chuva, tatuagem que fica e ousadia pra fazer verão em outro canto quando o frio se prolongar por tempo demais. Coma, reze e ame com sabedoria - e que mesmo com toda a disritmia, a travessia te traga paz.
segunda-feira, 15 de agosto de 2022
Away with the fairies
Num sábado nublado, deixei a casa ressabiada – outra vez a viajar sozinha, cansada, pro destino aquiescer. Ia atrás das verdades difíceis de engolir, difíceis de esquecer. Buscava aquela beleza longa, lenta, aquela que fica, que é toda sua, crua, e que pra tanta gente nada representa. Ressignificar histórias... deitar o corpo, fechar os olhos cheios de memória e pedir pra sonhar com sensatez. Em menos de um mês corria de um lado pro outro querendo a mesma coisa – afeto, família, lar... esperava o aconchego se aprochegar. Devagar, pequenices começaram a se formar com cor e cheiro de nuvens – quanto amor, quantas luzes se acenderam pra eu passar! Veio até mim um lindo menino e perguntou Por que você chora? Porque seu pai te ama tanto que já o amo agora – quis que o meu me amasse assim... não consigo ir embora. Segurou minha mão. Por que então te afastas? Fique aqui – só isso basta. Afaguei suas bochechas rosadas – Talvez você tenha razão, mas preciso saber onde dá essa estrada.
IPÊ AMARELO
Como ela é linda...
sábado, 13 de agosto de 2022
Con-solo
Mas o que é esse tal de amor? Pra uns, amor é segurança; para outros, paz - e para a maioria (afirmo no maior atrevimento), amor é aquele torpor gostoso, aquela onda alta, perigosa, mas que você quer surfar até o final porque bate um sino lá dentro do peito e o barulhinho é bom. Ainda que haja perspectivas químicas, psicológicas e espirituais sobre o que é o amor, o que ele não pode (sou atrevida mesmo, chupa essa manga) é ser morno. O amor não pode ser morno porque morno dói, porque morno é sinal de desatenção, de descuido, de sem desejo, sem vontade... de desafeto de corpo, de cabeça e de coração. Começa com um, mas o outro se cansa de nadar sozinho, de tentar sozinho, de estar sozinho num baião de dois. E por algum motivo mais estranho que os mistérios de Stranger Things, eles seguem juntos, descoordenados, duas almas sozinhas que foram ensinadas a serem felizes sozinhas, que a solitude é o novo hype. É esse o motivo, não tem mistério algum: temos sido ensinados que precisamos estar bem com nosso próprio ser antes de trabalhar em dupla. Já te disseram isso na escola? Nada! Pelo contrário: na escola a gente aprende que precisa da expertise do outro, da força do outro, da disposição, energia, alegria do outro pra construir nosso barquinho, a maquete da feira de ciências, pra fazer o macarrão do dia dos países, pra montar uma linha de acusação sem qualquer conhecimento de direito que vai condenar Capitu pra surpresa do próprio Machado de Assis. Na escola aprendi a entender a importância do outro em um projeto de grande porte, em um plano que, com falas emboladas e ideias várias, torna-se um majestoso estandarte à frente de um bloco de forró que conta com músicos, dançarinos, artistas, produtores, cada um com seu papel. Quando a gente pensa em uma banda, um grupo de dança, um filme, quando a gente se lembra de projetos que tinham tudo pra dar certo e deram foi com os burros n'água porque a gente decidiu fazer sozinho ou o resto do pessoal deu pra trás, a gente entende a importância do outro nas nossas vidas. Nem meu pai, que lutou tanto pra se isolar do mundo, deu o último suspiro desacompanhado - e tenho pra mim que, pra ele, fez toda a diferença. Pois que quando a gente pensa em se relacionar, vem um psicólogo ou um coach de relacionamentos cuja única formação são coleções de desabafos que ele transformou com palavras bonitas e te diz que sua independência e tenacidade assustam os homens; que você é areia demais pro caminhão de muita gente; que você nasceu sozinha e vai morrer sozinha, então tem que aprender a ficar bem sozinha na vida (e que atingir esse nirvana vai causar inveja nas mulheres mal amadas e pânico nos coitados despreparados dos homens). Aiai... Aqui vou eu desfilar minhas convicções ariscas pela sua timeline - já que esse é um espaço meu, deixa eu debater sozinha sobre a sozinhez (vocês já devem ter visto que eu adoro inventar palavras - aprendi com meu brother Guiminha desde o grande sertão e não parei mais :)). Pra começar minha reflexão, acredito que se acontecer de a gente partir desse plano sem companhia física no momento do desencarne, temos muitos companheiros encarnados e desencarnados que nos estarão guiando e amparando em pensamento - eu estive lá com meu pai sem estar; sei que ele não se foi só. Nascer sozinho, então, sei que a gente não nasce - somos amparados por um grupo de pessoas especializadas em nos ajudar a vir ao mundo, e ainda que desgrudem nossa mãe da gente, ela nunca (mais) se desgruda de nós - cá estou do alto dos meus 42 anos e meio pra te trazer essa verdade. Pois se até pra você virar gente na barriga da sua mãe ela precisa do seu pai... A gente nasce, cresce e, ao longo da vida, temos os laços de sangue e os do coração, e vamos, cada um no seu tempo e do seu jeito, tecendo essa teia de relações por toda uma existência (e nem vamos aqui adentrar a perspectiva espiritual que traz conexões de muitas vidas). Tem aqueles que a gente acha que nasceu conhecendo, tem aqueles que temos certeza que fazem parte das nossas vidas sem nunca terem feito, tem os que a gente queria que ficassem mas que se vão, tem os que deixam a gente ir sem cerimônia, tem os que querem que a gente vá; tem os que querem e se esforçam pra que a gente fique. Pela minha experiência: foque nesses. Olhe pra quem olha pra você de um jeito diferente em primeiro lugar - queira quem te quer bem, quem se faz feliz na sua companhia. Já compartilhei com vocês há mais tempo reflexões doídas sobre o coração de quem já amou uma vez, no Rowing. É doído porque quanto mais bonito, mais profundo, mais sincrônico e mais mágico, mais difícil é seguir em paz quando já não há mais aquela pessoa que representa todo o amor que você nem sabia que buscava de tão bonito - e é impossível (repito: impossível) ter isso outra vez. É o que eu e meu grupo de achismos arrogantes achamos, tu que lute pra nos provar o contrário ;) Quando a gente vive uma coisa inteira, sincera, mútua, quando a gente se entrega sem medo e partilha a intimidade de um jeito natural e se sente acolhida, protegida, desejada, mimada, linda na nossa singularidade, compreendida na nossa loucura, é como se o tempo abrisse uma fenda, um portal atrás da cachoeira, e tudo parasse pra gente amolecer o corpo, baixar a guarda e viver a lindura daquela coisa. E aí, depois de alguns anos e alguns encontros com pessoas especiais mas incompatíveis, você começa a pedalar de novo, e contabilizar suas horas de prazer e lazer consigo mesma, porque é assim que você vai se sentir plena. Você não é mais aquela pessoa ingênua que vive de ar e de amor - o amor não é suficiente, você constata. Elenca o que precisa em um relacionamento. Faz cursos de autoconhecimento pra não cair na balela do tal frio na barriga que não enche barriga de ninguém. Agora você se conhece; se cuida; se basta. Sozinha tá ótimo, poderia viver assim minha vida inteira (?). Tá bom, se cuidar e se amar são as bases do nosso bem-estar, de uma passagem mais confortável por essa vida, mas se bastar... Tenho certeza que eu me basto, mas me bastar não é suficiente pra mim, com toda a suficiência e filosofia que essa frase requer. Quero colo, quero fugir de casa, quero dormir aqui com você, quero alguém pra me abraçar quando eu estiver com medo, quando tiver um pesadelo, quero não precisar voltar depois das três. Quero companheiro de viagem, interlocutor, contador de piadas, ouvinte de desabafos, modalizador de críticas, dissipador de discórdias, desconversador de conversas que não alegram ninguém. Quero vetor de otimismo, incentivador sincero - quero sincero -- quero sincero. E quero o tcham que separa o amigo que é tudo isso e muito mais do amante que te desnuda com olhos sedentos de desejo, curiosidade, compreensão, afeto - amor. Sem isso, seu par é só mais um grande motivador da sua solitude, alguém que, com(o) você, torce pra acreditar que é possível ser feliz sem sentir, porque sentir está fora de moda, superestimado, clichê danado pra quem instagrama solitude e sofre de solidão.
quarta-feira, 10 de agosto de 2022
Cruzadas
... fazia conjecturas das mais profundas sentado àquela mesa. Acompanhava-me uma garrafa de cerveja que, para minha tristeza, não esboçava qualquer sinal de condescendência ou reprovação. Era uma terça-feira morna e eu olhava em volta - mesas ocupadas por dois casais e uma pá de figuras solitárias (se bem que poderiam estar realmente somente sozinhas, mas sei que o drama em doses homeopáticas me cai bem). Mirei-me com os olhos de fora: camisa denunciando os agastares do dia, mãos levemente ressequidas, unhas pra cortar, calças pra lavar, cinto comprimindo a barriga num misto de culpa e redenção. Eu bebo sim... e daí? Apeguei-me a essa ideia do e daí que pode querer dizer e depois. A pergunta não é por que e sim para quê, meu jovem - overheard; overruled. O depois pede o antes e o antes até àquela hora já havia sido ruminado - digerido e reciclado - sem - pasmem - grandes (r)evoluções. Servi mais um copo e observei mais cautelosamente aquela cena. Pensava em criar histórias pra cada uma daquelas pessoas, mas rapidamente me dei conta que nenhuma delas queria voltar pra casa, que aquele era um momento simples de sossego, de pausa, de adiamento de conversas importantes com o espelho. Não entendia por que não podia simplesmente tomar minha cerveja, mangiar a ceia e esvaziar a cabeça. Beber já não era um jeito de escapar de mim. Xeque-mate. Eu me rendo - dessa bebida não provo mais. Com as ideias confusas e a vista turva de banzo e de noite, vi se aproximar uma menina; não, uma moça; não, espere, uma (jovem?) mulher. Uma jovem. Uma mulher. Uma mulher jovem, com roupas de quem mora perto, jeito compassivo, olhar frágil, distraído. Desconectado. Trazia consigo um cachorro, que buscava em cada passo a novidade, que nem mandava nem desmandava - estava ali, companheiro meio despreparado pra missão de cuidar dela, leal por afeto, por gratidão, porque a vida assim o fez. Trazia aquela energia caótica de quem quer sair, quer ficar, quer morar naquele abraço e abraçar outros cantos do mundo de uma vez. Volta e meia era freado pela própria coleira, que a jovem mulher (não consigo pensar em outra forma de chamá-la), a essa altura, havia sem alarde prendido ao pé da cadeira. Fiquei me perguntando o porquê de uma pessoa levar um cachorro a um bar e prendê-lo ao pé da coisa toda. Carência? Culpa? Medo do desconhecido? Enquanto eu me ocupava em julgá-la, ela colocou um livro grosso na mesa, abriu o livro na parte marcada e tirou dele uma caneta. Já havia ali uma cerveja e um copo pela metade, que ela tomava com tranquilidade enquanto olhava com atenção a página aberta. Ficou com a caneta na boca por um momento e começou a escrever no livro. Eram palavras cruzadas. Por vezes ela passava minutos inteiros olhando pra um ponto fixo; de repente, seu rosto se iluminava e ela saía escrivinhando pra qualquer lado. Tomou toda a cerveja, pediu um peixe, que dividiu com o cachorro, pediu outra cerveja com a delicadeza de quem pede uma taça de vinho em um lugar sofisticado e prosseguiu cruzando a caneta por terras inexploradas. Houve uma parada maior que o habitual. Ela forçava a vista, olhava pra cima... Respirou fundo, pesadamente. Foi até o final do livro, copiou alguma coisa e pude notar a frustração ética no retesar do seu corpo enquanto escrevia aquelas novas palavras, vocabulário que ela ainda não dominara, e, queria crer, por esse motivo não existia. Depois da ginástica mental, ela teve que olhar a resposta - fim da linha, bebê. O perfeccionismo vai te engolir viva, moça, tive vontade de dizer. Mais um gole, um suspiro, uma nova cruzadinha em branco. Resiliência. Resignação. Passatempo. Passa, tempo, que nessa atividade quase autista de adivinhar palavras ela vai marinando suas dores e seus dilemas em água morna. A cerveja acabou logo depois do peixe. Ela organizou os leftovers meticulosamente e, como em um ballet coordenado, pediu a conta, serviu-se do último copo e deu o último gole logo após o pagamento. Fechou o livro, tomou a coleira e foi por onde tinha vindo, sem bolsa, sem telefone, sem maquiagem, sem relógio, sem pânico, sem pressa. Tomou uma fatia de tempo como se ninguém ou nada mais existisse, como se a vida fosse uma peça que parei pra assistir quando ela parou docemente de insistir que mais alguém caberia naquela equação.