domingo, 29 de setembro de 2024

Don't leave me dry

"Que tempos penosos foram aqueles anos - ter o desejo e a necessidade de viver, mas não a habilidade". Cruzei com essa verdade inequívoca logo no início de Misto Quente, obra-prima de Bukowski. Interessante demais uma pessoa de outro lugar, outro tempo e espaço traduzir sua alma de um jeito que nem você havia sido capaz até topar com esse pedaço de resposta. Não sei precisar por quanto tempo me senti assim, estrangeira em mim mesma, perdida em vozes, formas, instintos insidiosos por puro desconhecimento do que eu aqui fazia, do que precisava fazer e de como habitar esse mundo inóspito de tantas maneiras sem levantar suspeitas dessa inabilidade. Foi sofrido, foi complicado lidar com olhares furtivos em braços cruzados, foi triste sucumbir, foi desleal me desvalorizar quando o que eu queria era paz e amor em cascata, gelo seco cor de rosa subindo pelas pernas da mesa. Lembro do Mathias tocando Creep no show de calouros do colégio e penso na minha inabilidade em compreender aquela letra, mesmo que aquele momento e aquela música tenham estranhamente grudado nas minhas entranhas, como se eu tivesse que saber. Se a gente era legal? Se dava pra ser mais que aquilo? Se é possível, saudável confiar, acreditar, esperar... Esses banhos de efeito borboleta que a gente se dá antes de experimentar um batom novo, dar uma banana pra sociedade na frente do espelho e se arrepender 2 minutos depois e voltar e dizer desculpa, sociedade, preciso de você, sociedade, espera eu tentar me ajustar, sociedade... pra viver como eu quiser. Sem cigarro porque faz mal; com cerveja que a onda é boa; mergulhando de quando em quando no sol quente com água gelada, Sonrisal de dor antiga e dor nova. Penoso pode remeter a tanta coisa... mas a inabilidade tem que ser superada - a inabilidade tem que ser perdoada para que os anos e as pessoas e os números e as notícias possam caber dentro das nossas esperas, que os anúncios sejam só um prelúdio particular de futuros desafetos e que todos fiquem com Deus, com Jah, com Buda, com o cosmos, com o Big Bang. Somos todos heróis por ainda estarmos aqui. Tomo cerveja, leio Bukowski, ouço Into the Wild e tenho quase certeza de que vai ficar tudo bem.

terça-feira, 21 de maio de 2024

IVAN

Um dia desses você me disse que não sabia dançar. Espremi essa informação dentro de um minipoema que você me recitou pouco antes: não me acostumei a viver sem amor. Não eram essas as palavras, eram muito mais bonitas, perfumadas pelo vinho que dividíamos em uma bela tarde de sol. Imaginei o próprio paradoxo: uma vida do tamanho da minha, com calor e sem dança. Tenho certeza, Ivan, que vocês dançaram pela vida afora, rindo-se dos aforismos, dos moralismos, rodopiando por um salão verde de cetim, esperança de quem não espera, andança cariciosa.


Nos que têm saudade, deve haver, penso comigo, um senso de mission accomplished, de vim, vi e venci. Deve ter cheiro e gosto de vivi e senti algo bom a ponto de ser preservado. O tempo passa e nele pendura-se um mural de memórias que a gente aperta os olhos pra acessar, pra buscar no escuro do fim a sobriedade, a eternidade de um breve soluço dos dias. Agarramo-nos àquele fragmento de lindura que repentinamente nos aquece e ficamos ali, gangorrando pelo passado que escorre vermelho na taça vindoura... Dançamos entre línguas e planetas enquanto arrulhamos sobre novas rolhas; seguimos empunhando, empurrando o car(r)inho das lembranças por mais um logo ali.

Como você, querido Ivan, também não me acostumei a não ser amada - e talvez por isso mesmo seja ainda hoje, desde sempre, tão arisca. Minhas saudades são invisíveis, são impossíveis, difíceis, duras, imaginárias - intraduzíveis. Hoje poso cansada à frente dessa promessa de saúde, de beleza e juventude que numa bela tarde de sol teceu-me juras indizíveis. Por dias me autorizo a não tentar nada que me indignifique ou me perturbe - hoje não; amanhã fico por aqui. Na entressafra da falta o sorriso é tão sincero quanto a vontade de contestar esse mosaico desconstruído, involuído, cacos banais e austeros dos meus (des)afetos perdidos, caídos por aí. 

Que samba de uma nota só é enredo pro desalentado; que o sim que não vem já é não em si mesmo; que morrer de amor é papo de desavisado; que sentir saudade é viver a esmo... Feliz daquele que, ao se lembrar, sorri.

De tanto buscar amor no outro me esqueci de amar a mim, e hoje me pergunto se de fato, em algum momento dessa vida tão grande quanto a sua, busquei alguma coisa além da minha própria independência, da descolonização da minha alma colonizada de underdog, escape goat, stray cat, white trash. Sorrisos encantam, mas os olhos não mentem. Nem os vinhos. Lucky me.

sábado, 4 de maio de 2024

EN PASSANT

 Eis que ele passa,

orgulho em cada passada,

olhar destemido.

Existo.

Peito estufado,

andar passarelado.

Resisto.

Resisto e falo

sem dizer palavra;

resisto e calo

sem que nessa fala de corpo inteiro

exista mágoa...

Como se o mundo fosse justo

E existisse pala

em todo palco da vida –

como se a servitude de quem paga

pudesse apagar o trauma

de quem fica.

Eis que ele respira

e dá um passo certo,

certeiro,

rumo ao infinito

derradeiro

ao sol tangível,

visível

do que queima

mas não significa.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Sense and sensibility

 O grito... o grito persiste, meio rouco, meio alucinado, reacionário sem revolução. Chove pelos olhos, janelas da alma, sai em marimbondos, palavras ferrenhas, pela boca que cansou de bendizer. Quem foi que disse que seria fácil assistir de camarote aos nossos desencontros de credo, raça, raiz, de plástico ou de borracha, de pai e mãe e aquele manual de como não ter medo do escuro, como fazer mais amigos, como suportar... Ai que suportar ferroa, arde, e a gente sai zombeteando pelo escuro incerto, pensando em que momento o sol vai nascer e trazer com ele a paz – a igualdade – a justiça – o entendimento – a calma, o dom inestimável da resignação. Acho que no momento da multiplicação das lições de vida, algumas palavras se perderam num sopro (aquelas que amansam, amaciam), e o que sobrou ficou meio duro, puro desalento. Pela janela indiscreta do pensamento passam cobras e lagartos a todo momento – provas da sua pouca fé. Sim, porque hoje começou com intempéries, turbulências, desventuras em série e vai terminar com cansaço bom, senso de propósito, fichas caindo como sementes maduras em solo fértil, arado demais. O afeto... o afeto me persegue como Pepe Le Pew, me encontra nos recônditos das minhas bad vibes e revira tudo, sacode, abre a janela, me traz um café. Olho para as fotos que me cercam enquanto escrevo essas linhas e digo pra mim mesma: não sei, não consigo, não entendo, mas hoje é preciso gritar que o afeto venceu. 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

The Chosen

 Experimente dar uns passos para trás e procurar, nos recônditos da sua lembrança, por mergulhos e flashes. Verá que os lapsos da sua memória não te impedem de trazer ao palco fragmentos de vida incandescentes, sopros de verdades, dores, escolhas equivocadas, palavras e atos que por um triz não mais te representam, que por um triz ainda te condenam. Enquanto a festa passou você assistiu da janela, e teve tempo pra pensar se de fato algum dia foi bom estar ali embaixo, ao sol, pela chuva, ao relento, imersa numa fragilidade que precisava te habitar pra você se convencer que também queria ser mulher, anjo, boneca, princesa, criança. Mergulhe no mar profundo da tristeza e experimente tirar de lá uma criança. Veja sua cara estampada pelo álbum de retratos, em verde, azul, vermelho e branco, repare nas companhias. Você passou muito tempo sozinha, desde cedo confabulando com seus botões. Criava explicações para sobreviver em um mundo onde suas palavras não tinham voz. Você cresceu e entendeu a constante repulsa pela palavra sobreviver - é pequeno e solitário demais. 

Tente se lembrar da primeira vez em que te traíram, tiraram sua esperança; de um tesouro que você possa ter guardado com esforço e dedicação porque acreditava que era precisamente isso que te tornaria, aos olhos do mundo, especial. Uma figurinha, um papel de carta perfumado, um lápis brilhante, um diário sem erros de português, cartas de gente que um dia esteve ali, de gente para quem você supôs estar um dia, uma teoria, uma hipótese, uma paranóia, um pedaço de sozinhez com incompreensão. Se você olhar pra trás com óculos perscrutadores e instinto felino, vai ver que riu, chorou, bebeu e falou alto, que trovejou, relampeou, chutou a porta e catou a maçaneta sem revolta aparente, sem ingenuidade e sem vontade alguma de sair daquela água fria e densa, pegar uma toalha e sentar perto de quem quer que fosse e despejar por ouvidos sonolentos uma explicação conveniente. 

... e em todas as esquinas do caminho você trombou com Deus. Em todos os passos estranhos da criança ferida no meio da chuva era um vento, um desenho no céu, um assombro, uma emoção de menina sozinha, sem ninguém pra conversar, pra entender. A menina que quis colecionar amigos como a Moranguinho, que achava sua casa o lugar mais triste do mundo... a menina que só não queria mais se sentir tão inadequada, brilhando no claro. Um dia ela saiu pelas ruas escuras do seu pensamento e decidiu que não iria voltar pra lugar nenhum. As pessoas iam e vinham, temporárias que só elas, cumprindo seu papel. O peito ainda dói - de angústia pela falta de respostas - e as pessoas ainda passam como patos pelo seu daydream, algumas querendo genuinamente - não sei se por curiosidade ou estima - se demorar um pouco mais. 

Isso é tudo pra dizer que de meu fortuito encontro com quem me protege e guia nesse plano, surgiram presenças mágicas iluminando as ruas escuras do meu pensamento com flashes de propósito. Escrevi um livro sobre a falta de amor que eu sentia e ele agora está sendo contado por aí em tom de boa conversa. Esvaziei meu saco de traumas ao longo de uma história encantada, e de presente me fizeram uma boneca sem boca que fala de um jeito que todo mundo escuta. Sei que fui escolhida para vencer essas pequenices todas, essa mania de não saber pedir, essa fé em castelos de areia, esse medo de perder mesmo sabendo que tudo é transitório e que nada me faltará. Sou Mateus, sou Maria Madalena, sou Judas, sou Simão Pedro - sou a filha tão grata quanto humana, meu mergulho mais difícil, meu próprio feixe de luz sob as águas turvas do meu viver... um pot-pourri bitter-sweet de bits and pieces.