Isso... agora olha pra cá. Vira a cabeça devagar. Vai virando... calma... excelente! Faz uma coisa bem doida aí - você é bailarina ou não é? Então? Faz tipo uma pirueta. Já sei! Faz uma abertura. Se vira aí, minha filha, faz alguma coisa bem interessante porque você é a última. Vai fechar com chave de ouro, hein? O sapato você arruma um seu mesmo, pode ser preto, qualquer um. Uma meia preta, viu? Traz também uma meia preta bem preta que aí não tem erro. Agora no seu cabelo... seu cabelo tá curto, né? Uai... vamo colocar ele pra cima então, bem pra cima, cheio de ponta pra todo lado, bem louco. Que estilo! Só falta a maquiagem. Me empresta a sombra e o lápis aí, gente. Iiiiissssssooooooo. Vou fazer uns riscos vermelhos de batom aqui no olho que é pra gente ter uma noção. O blush pode ser essa sombra meio laranja mesmo. Vem comigo, quero te mostrar pra todo mundo. Enquanto isso vai tentando andar nesse sapato da loja do lado. Isso, até lá dá certo - só não vale cair, hein, hahaha... Atenção: olha que linda a minha modelo! Produção própria, bem - sei ou não sei das coisas? Ela não é modelo, é professora de inglês da Cultura Inglesa, cliente minha. Vai trabalhar que nem uma palhaça, com maquiagem e cabelo, vai sair do trabalho correndo e chegar aqui correndo pra fechar o meu desfile. Não ficou um luxo? Ela vai me fazer um favor, porque pagar não tô podendo. O vestido tá um pouco grande, mas qualquer coisa a gente dá um nozinho nas alças, qual o problema? Desfile é assim: tem menina que desfila com sapato 39 e calça 35, é despojado mesmo.
(diálogo entre uma ex-wannabe-modelo lojista e uma ex-aspirante a modelo de 30 anos)
Background information: Há exatos 15 anos, a ex-aspirante a modelo que hoje beira os 31 foi chamada de bonita. Foi dito a ela inclusive que seria possível viver dessa beleza incomum (leia-se: extrema magreza beirando a inanição, braços extra-longos e pernas parecidas com os braços). A menina de 15 anos sonhou, sonhou, ... e chegou em casa. A mãe não concordou e pronto. Quando a mãe concordou, acharam uma agência no Centro (a parte caradepaumente chamada de Lourdes) que fez uma oferta irrecusável: morar em São Paulo e trabalhar na MTV. Um pequeno detalhe: as modelos não receberiam visitas dos pais pelos primeiros seis meses. Como eu disse, só um detalhe. E a carreira meteórica da bela feia acabou aí. A menina achou que era feia por mais alguns anos e virou um bom bocado de páginas feias ao descobrir que era bonita. No ápice de seus 30, ela é chamada para desfilar - o orgulho apaixona-se cegamente pela vaidade.
(diálogo - parte 2)
Mas qual o problema com a roupa? A roupa tava linda, gente, um pouco mais largo é o charme... Dá o nozinho, não tem problema nenhum. Meia preta e sapato preto ou meia bege e sapato bege. Se arruma em casa, se vira, às oito e cinco você tá lá, né? Claro que vai dar tempo, se você trabalha até as oito não vejo problema em você chegar às oito e cinco. Vem do trabalho maquiada com o sapato e a meia. Dá uma olhada no lugar onde você vai desfilar - quando chegar, vai direto pra lá. Que isso, como as pessoas tão falando que o vestido não tá bom? Já te expliquei que em desfile não tem dessas coisas. Bom, se você também tá achando, é melhor deixar pra lá. Vou arrumar outra pra entrar no seu lugar, vai ficar melhor assim. Agora tô cheia de coisas pra resolver, não tô podendo perder meu tempo com isso. Pode deixar que vou achar alguém pra te substituir. Tira a roupa e dá pra moça colocar no cabide. Pede pra moça tirar o seu nome que tá escrito na roupa, tá bom? Brigada, querida. Tchau.
OBRIGADA, MÃE. AINDA BEM QUE EU literalmente TOQUEI A VIDA.