Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas. Na minha vida o principal meio de emancipação de mim mesma, dos meus antepassados que fracassaram no amor e em outras drogas, foi o conhecimento - consciência de que os erros fortalecem, que saber ler as entrelinhas é a chave pra compreender o todo, que a humildade é a mãe da sabedoria, da prosperidade, da mais-valia, de tudo que importa, que a esperança derrete a pedra que cristalizou o sofrer do coração da gente. Conhecimento de causa, de matéria, de energia, de caminho, de verdade, de propósito, de argumento, de sentimento, de anseio e de glória - conhecimento do que vem a ser a fé, o meu problema, o problema do outro, o que está sob meu controle e o que foge dele e não pode, por isso, me descabelar. Li há pouco tempo dois livros de uma autora que ganhou o Nobel de literatura em 2022 pelo conjunto da obra - infeliz coincidência, já que o primeiro foi tão desagradável que passei dias arrotando aquelas linhas indigestas. O segundo foi melhorzinho, mas, como minha leitura dos franceses, blazé: sem emoção. Fiquei atordoada com o fato de uma pessoa que discorre sobre um aborto na juventude com frieza ártica disfarçada de naturalidade/autonomia/independência/maturidade (pelo amor de Deus chega) não só concorrer mas ganhar o maior prêmio mundial atribuído a um escritor. E não estou falando aqui de culpa cristã nem da minha opinião sobre o ato em si; estou problematizando uma tentativa - a meu ver muitíssimo frustrada - de naturalizar uma situação banalizando-a, trivializando o que não tem absolutamente uma vírgula de trivial. Em minhas palestras espíritas, falava sempre do orgulho e da vaidade como os maiores vilões da humanidade, e ao ser desmentida e acusada téte-a-téte em nome de Jesus, fico pensando que não reagir negativamente, não querer que a pessoa pague, se ferre, se estrepe é tarefa pra santo, e santo nenhum está preparado pra habitar esta terra. Viver é foda, morrer dá medo e ser atacado no meio do caminho é tudo que eu rezo pra não me acontecer desde que fui de fato atacada a mão armada dentro de um ônibus de viagem (voltando de um enterro), dentro de um restaurante e, menos de vinte e quatro horas depois, dentro de um shopping. Éééééééé... o inferno é aqui. Hoje meus alunos apareceram ressabiados, com medo de um grupo de Tik-Tokers ameaçando promover ataques em escolas, pagando de avengers de Columbine - falácia + ócio + falta de empatia + bebida + droga + sexo barato e zero pista de onde vêm o pânico, a ansiedade, a depressão, o surto a cada nota baixa, cada plano frustrado, cada advertência, cada não. Conhecimento é controle; vitimização é conforto. O que me cabe é acompanhar de longe essa fila de patos sem mãe engrossando a homogeneidade ideológica, o maria-vai-com-as-outrismo, o coitadismo, a histeria coletiva. Se eu não trabalhasse, não tinha dinheiro pra estudar; pra comer; pra fumar meu cigarro, tomar minha cerveja, me embriagar de experiências que me afrontam, me confrontam e me impulsionam pra fora da bolha de mediocridade que quis, lá atrás, me abocanhar. O que as pessoas hoje fazem pelo determinismo, comunismo, egocentrismo, vitimismo, conformismo, até pelo (pseudo)altruísmo é nocivo demais - e demais é muito mais, é excesso, é sufocante... insuportável. Talvez por isso uma autora que narra tão casualmente o processo de transar sem proteção-descobrir uma coisa dentro do corpo-procurar meios para se livrar dessa coisa e ganha o Nobel de literatura seja a ilustração perfeita do que melhor representa o sucesso em nossos dias, porque profundidade dói e machuca na mesma proporção - profundidade é que nem bolsa de grife: custa caro e ninguém quer pagar, mas é fácil imitar, fácil blefar que tem. Talvez o melhor mesmo seja não acreditar em nada, seguir correndo com sapatos desamarrados pela chuva fina, cabelo grudando no rosto, roupa pesando o corpo, água salgando os olhos que pouco enxergam porque decidiram que, afinal, enxergar é só uma questão de perspectiva; que, no final, um pouco de positividade tóxica é a lente rosa que faltava pra fingir que o que a gente sente ou pensa na verdade pouco importa. Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas.