Destino: Brasília. Expectativa: well, well, well... Visitas anteriores: mais que duas, menos que dez - contextos diversos. Finalidade: visitar a família. Finalidade semi-secreta: sair da minha vida e levar o corpo junto pra passear. Primeiro passo: comprar a passagem (créditos à minha amiga Marina, que mudou a minha vida com esse lema). Planejamento: my plan's no plan, Sam.
E foi assim que eu resolvi deixar a copa e tudo mais pra lá e passar quase um mês em Brasília. Meu primo e minha tia sempre convidavam, o tempo nunca deixava... e eis que eu resolvi - talvez pela primeira vez em sei lá quantos anos - matar meu tempo no peito, segurá-lo com as suas mãos e falar firme ao seu ouvido "campeão, agora quem manda sou eu". Nesse mesmo dia comprei a passagem; quase um mês depois, plantava-me à porta de casa com a velha malinha vermelha em punho; na outra mão, o telefone antenado ao Easy taxi. Catei meu Kerouac 3 em 1 e fui ao encontro de uma bela manhã cinzenta, sem saber ao certo o que esperar de meus próximos dias.
O trajeto foi solitário, saudável. Pude desfrutar da minha própria companhia pra variar. Sentada à janela, pensei nos motivos pelos quais algumas pessoas tinham medo de voar. Era uma coisa que eu realmente não conseguia entender. Sempre achei incrível ver aquele pássaro gigante cheio de gente correr pista afora até levantar vôo. Era um momento dos mais bonitos. A cidade ia aos poucos desaparecendo e dando lugar a outras cidades, que se estendiam em fileiras de luzes por entre as montanhas e os lagos, ao longo de matas e pradarias. Vinha-me à mente a extensão do meu país, com seus palácios e casebres espremidos no meio de tanta gente. Ri sozinha ao pensar nos colombianos que assaltaram pedestres em Belo Horizonte (pessoal, por favor parem de roubar nossos empregos) e concluí com certa tranquilidade que espaço, diversão e surpresa não faltariam aos visitantes de plantão.
Voltei a confabular sobre a questão de espaço ao pisar em Brasília. Puta merda - quanto espaço! Joguei as malas no carro da minha tia e fui comendo a cidade com os olhos. Gramados a perder de vista, castigados pelo sol e pelo tempo seco. Grama que não acabava mais; grama inabitada sem ser virgem... natureza que não tem cara de natureza. Mas o espaço entre as ruas, entre os prédios, entre os blocos trazia conforto, e o verde aumentava a sensação de liberdade. Vim a entender mais tarde o espaço entre as pessoas com um certo alívio. Em Brasília arranha-céus não são permitidos - hooray! Dá pra ver o céu de onde você estiver. Essa pequena descoberta me encheu de alegria, e passei muitos dias testando minha nova teoria. Faz bem pra alma sair de casa com qualquer roupa, pra qualquer lugar, sentindo o céu sobre a cabeça sem esperar nada de ninguém ou lugar algum, sem que esperem nada de você. Ainda que porventura queiram saber quem você é, não faz diferença - você é só um forasteiro, alguém que tem um certo orgulho de não pertencer a esse novo lugar e nem ao lugar de onde saiu. Você é o que vê quando olha no espelho - alguém prestes a se reinventar, do jeito que for e sob qualquer circunstância.
Comecei a ler meu On the road em um banco de praça. Sim, passei muito tempo sozinha - a única pessoa de férias na cidade era eu. Essa é outra coisa muito legal sobre Brasília - você pode sair do apartamento e escolher qualquer rota, mas não demora muito até o próximo bar, banco, parque, salão. Tudo igual; tudo diferente. Não importava o que iria encontrar - decidi que meu livro caminharia comigo por cada uma daquelas ruas carentes de calor humano; em novas esquinas, travávamos as mais fascinantes conversações. Diferente de Sal Paradise, eu sorvia minha nova realidade com prazer e cautela - queria me curar, não me perder. Sentia os lábios queimarem ao sol e os cobria de água e óleo. Pescava minhas vontades pela boca com um cartão de débito - há muito não queria depender de ninguém. Sentada na grama de uma praça próxima, assistia tranquila ao vai e vem fluorescente dos corredores, suando a camisa em qualquer tempo com seu foco costumeiro. A saga de Kerouac ia mudando de cor sob os meus olhos, e eu só pensava que ele devia ter lido Dostoiévski na adolescência - e que Fiódor deveria ter escrito em suas capas "não tente isso em casa" como sinal de advertência.