Era perto das três da tarde e eu equilibrava papéis e livros a passos largos, em direção ao meu carro; na contramão, duas moças nos seus vinte e poucos anos puxavam inconscientemente a mochila junto às costas enquanto travavam uma conversação interessante pelo caminho estreito que àquela hora dividíamos. Meu pensar piscava aturdido por confusões de todo tipo, mas nenhuma delas impediu que minha antena captasse, naquele pequeno momento em que nos apertamos para caber naquele caminho, uma onda de palavras que se quebrou sobre os meus ouvidos: ... a gente sentou e ele pediu um café à João Gilberto... Assim. Uma onda. Quebrando pelo meu casco endurecido de vivicionices capricornianescas, planilhas em word riscadas a lápis. Criei uma imagem de um casal que sai junto pela primeira vez e me vieram as emoções do primeiro encontro, as inseguranças, os traumas e as expectativas, o que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta - e o que tudo isso que se seleciona ilustra o medo que temos de nós. Nesse meu devaneio mais sistêmico que sistemático vi o moço chamando a garçonete timidamente com um breve aceno, seus movimentos leves e coordenados, seu olhar tranquilo a maquiar uma breve ansiedade, a esconder uma rabugice teimosa quando lhe passava pela cabeça a possibilidade de tocar distraído uma nota errada... de desafinar. À medida em que a atendente se aproximava, ele ensaiava mentalmente os passos e compassos, os sis e os fás, um dó desenganado. Pelo bloquinho de anotações foram-se desenhando os detalhes do pedido em notas suaves, tom melancólico e incerto de quem não sabe ainda em que momento daquela história uma daquelas mãos sobre a mesa abraçaria a outra - em que momento ele por fim entenderia que a perfeição encobre a essência, e é essa mesma essência, com seus encantos e desatinos, que sintoniza cada par de corações desafinados, roucos, uivantes, estelares. A vida é cheia de personagens marcantes, e de tanto viver e querer achar um sentido, uma tribo, um ouvido, seguimos o caminho dos outros, ouvimos essa e aquela conversa, represamos a onda que passa numa piscina cheia de água que não é nossa, que ensina, que purifica mas que não nos pertence nem define - que não nos simplifica nem adoça. Engessamos nossa existência enquanto assistimos por uma janela embaçada os desafinos alheios que a gente endossa, fracassos que nosso olhar hipermétrope transforma em receitas de sucesso instantâneas, espinhos que a gente quer porque quer que sejam rosas. Às vezes me lembro daquelas meninas cruzando meu caminho estreito, daquelas palavras soltas que ecoaram pela minha alma e despertaram as reflexões que hoje compartilho, e penso que possivelmente o que se passou nada tem a ver com aquela cena criada pela minha imaginação; que em algum canto desse mundo pode existir um café à João Gilberto, cujo sabor é tímido e perfeccionista como ele próprio. Mas quer saber? O que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta - tudo isso que se seleciona só ilustra o medo que temos de nós. Hoje pedi um café à João Gilberto e cada gole quente, amargo e perfumado acordou em mim a lembrança de que somos todos desafinados com corações batendo no fundo do peito, pulsando um querer feroz.