Conheci Mônica quando tinha dez anos. Meus pais haviam acabado de se separar e me mudei de uma casa bem grande para um apartamento bem pequeno. Para mim, do alto de minha infância madura, parecia que eu estava mudando de país. Nossos móveis não cabiam na casa nova, mas experimentei uma nova felicidade: a de ter meu próprio quarto, onde perdi noites de sono pensando na nova escola, nas novas aventuras e em um vizinho chamado Cristiano, com quem trocava olhares furtivos quase todas as noites pela janela – o que via na verdade era um vulto, uma sombra lá da rua do lado, e me bastava.
Não sei ao certo como ocorreu meu primeiro encontro com Mônica; não me lembro de tais pormenores, ainda que ver uma pessoa como ela pela primeira vez fosse algo significativo o bastante para ocupar uma página especial na minha memória. Mônica era muito alta (talvez seja exagerada essa visão, tendo em vista que eu era uma criança), muito branca e tinha os cabelos muito pretos. Era também muito magra, e quando sorria seus grandes dentes amarelos, o mundo lá fora deixava de ter importância. Usava óculos redondos como os de John Lennon, andava sempre com um cigarro e uma xícara de café. Quando tinha a honra de ser convidada para uma tarde regada a café extra-forte e bolo de chocolate de caixinha, tomava aquele café como se fosse leite, e jurava que bolos de chocolate com água e sem açúcar seriam sem dúvida a oitava maravilha do mundo num futuro próximo. Era nosso ritual – ela fazia o bolo e de repente havia um motivo absolutamente plausível para uma menina de dez anos e uma mulher de vinte e oito passarem a tarde juntas.
Mônica tinha uma voz fina que nunca achei estridente nem suave – era do jeito que deveria ser, combinava com o que ela dizia e com o que representava. Se eu fechar os olhos, posso ouvi-la tagarelando e rindo da loucura que tinha sido sua vida até ali. É meio difícil de explicar, mas não tinha a menor ideia de como ela queria me dizer tanta coisa e como eu surpreendentemente entendia sem pensar em nada, sem questionar ou associar aquelas narrativas a apologias, intenções ou influências. Apenas funcionava. Sua história, vim a entender depois, era como a de tantas outras pessoas perdidas por aí: morava em uma casa no Mangabeiras com a mãe clássica, aristocrática e sem qualquer qualificação profissional, o pai provedor e os irmãos inconsequentes; o pai deixou a mãe pela doméstica (mas pode ter sido também constatada uma bigamia, minhas lembranças se misturam e me traem agora); a mãe conseguiu comprar um apartamentinho com o que sobrou; os filhos cresceram, casaram e todas essas coisas; ela e Mônica foram parar no segundo andar do meu prédio; a mãe manteve a classe, seus forros bordados e suas porcelanas, sem nunca perder a gentileza. Engolia cada um dos seus casos fantásticos sem imaginar se ela era rica, pobre, se foi mais feliz enquanto morava em uma mansão em um bairro nobre da cidade ou naquele apartamentinho modesto, mas preciosamente decorado por pessoas requintadas a ponto de serem simples. Dinheiro, bairro, status, diferenças entre as pessoas que não fossem físicas não haviam ainda sido incorporadas à minha vivência. Eu também tinha vivido em uma casa grande e agora morava em um apartamento pequeno com metade dos nossos móveis por causa do meu pai. Aos nove anos já sabia que o Collor havia pego o dinheiro dele, que ele partiu tudo o que tinham ao meio, que tínhamos um monte de telefones porque linhas fixas davam dinheiro, e que mesmo assim tinha que esquecer tudo isso e gostar do meu pai, porque afinal de contas ele era meu pai e pai é pai, só tem aquele e pronto. Mônica falava do pai como falaria do bicho do vizinho - dava uma baforada, tomava café e contava suas tristezas com tanta naturalidade que era como se nada dentro dela doesse. Ela não era esse tipo de pessoa que ri pra todo mundo, e certamente não tinha nada de meiga; era leve sem ser mole, e vibrante sem ser histérica. Era ela de um jeito só seu 24 horas por dia, e percebi anos mais tarde que por esse motivo eu a amava e amaria pelos outros anos por vir. Embaladas pelo aroma do incenso que queimava junto à janela, eu sentada na almofada e Mônica de pernas cruzadas sobre a cama, sorvíamos o café fumegante e nos perdíamos entre passado e presente, e enquanto ela falava eu sonhava acordada e tentava imaginá-la aos quinze anos, tentando descobrir quem era entre um baseado e um namorado mais velho no auge da puberdade.
Um dia Mônica pediu à minha mãe para levar-nos a uma festa junina. Vim a compreender dez anos depois o que significava uma festa junina no IAPI, e essa compreensão coloriu minhas lembranças de surpresa e sincero espanto. Quando eu tinha dez anos nada era proibido ou errado – vivia as escolhas de Mônica com o mesmo entusiasmo que ela tinha ao viver as minhas. Contava a ela tudo que eu achava sobre minha nova vida e ela ouvia, dava opiniões, discutia minhas questões como se fossem um tema adulto ou muito importante. Por alguma razão engraçada, acho até que pra ela podem ter sido importantes de verdade.
Reencontrei Mônica oito anos mais tarde. Ela estava casada e loira; eu estava perdida e alcoolizada. Lembrei que minha mãe um dia me apontou o prédio: é ali que a Mônica mora agora. Não era mais criança, e sentia-me preparada para conversar e contar a ela minha versão do que era a adolescência. O tempo foi, voltou e um belo dia lá estava eu, de pé na porta. Toquei a campainha e em poucos minutos lá estava ela. Parecia mais branca por causa dos cabelos platinados, cigarro pendendo entre os dedos; Mônica, os anos não passaram pra você, tive vontade de dizer. Não fiquei muito tempo. Não houve qualquer palavra naquele momento da qual eu devesse me lembrar hoje, e a prova é que não me lembro de nenhuma das célebres amenidades que ecoaram pela sala de jantar com decoração inglesa. Mônica não se surpreendeu com a visita; me olhava e ria como se estivéssemos retomando nossa última conversa. Disse a ela que havia me tornado alcoólatra; ela riu e tentou me dar conselhos que mais pareciam uma leitura forçada do manual das mães de adolescentes. Apesar de todo o cenário, sentia-me leve, como se as porcelanas de sua mãe e seus barrados de crochê me dessem as boas vindas. O marido mal disfarçava seu desconforto, e me olhava como se eu fosse um animal exótico (dez anos depois eu veria esse olhar outra vez, e ele teria bem menos importância e bem mais graça). Não havia mais bolo de chocolate feito com água, e o café já não tinha gosto de expectativa nem de coisa secreta. Prometemo-nos novos encontros que jamais aconteceriam, que jamais aconteceram. Achei que essa havia sido a última página de nossa história, mas muitas histórias depois, me peguei recentemente pensando nela. Não sei se dentro de nosso vasto mundo ela foi uma grande pessoa, e talvez por isso quis aproveitar meu tempo e espaço para dizer que, dentro do meu pequeno entendimento, tenho certeza.