Toda vez em que eu me olho no espelho vejo algo diferente - uma sarda nova, uma linha que se acentua, um fio de cabelo que perde a cor. A expressão, no entanto, não se altera. Continuam a brilhar meus olhos pensativos, meus dentes que adoram convidar para uma gargalhada ou ao menos um sorriso sincero. Vejo as formas do meu corpo e me sinto feliz ao percebê-lo bem-cuidado, saudável sem exageros. Penso em toda essa informação a se desenhar sobre a minha carcaça sem pedir licença... fico desejando sorver mais um gole dessa mudança que me esquenta o peito sem drama e sem pressa. O sabor das novidades que laçam meu momento de vida dá água na boca, conforta como sorvete que a gente prova pela primeira vez. Timidamente flerto com minhas pequenas-grandes conquistas e agradeço por ser adulta em terra de criança, que ser adulta me tira o medo de trocar o estar pelo ser, me faz querer permanecer essa moça-menina que não acredita em meta-romance ou pseudo-escolha. É hora de fazer as malas: por dentro, medo mineiro de onda grande - mar bravio a me espreitar com seus olhos de sonho e temperança.
Esse blog é destinado a compartilhar viagens literárias, e está aberto a seres humanos e afins... Divirtam-se!
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
O atropelador de velhinhas
Andava distraído, ideias lançadas ao vento. No banco do passageiro, papeis lembravam-no de seu destino e propósito. De dentro do carro o sol ia alto e brilhava sem queimar ninguém - a fome o devorava. O clarão escondia novos capítulos que se desenrolavam nas ruas; o som falava bobagens que não interessavam mais. Das contas aos contos do vigário, dos planos ao pleno exercício da cidadania que vira chacota paga, vivia por viver, fazia por merecer e não acreditava em muita coisa, não. Andava distraído quando algo o impediu de seguir. Era uma senhora de uns sessenta anos, bem vestida, que atravessara a rua sem muita atenção. Saiu do carro, uma confusão embaralhou seus nervos e o que ocorreu depois, ah, isso não se sabe ao certo. Pegou o telefone no bolso, chamou por socorro e atendeu aos trâmites burocráticos de praxe. Foi para casa e tomou um banho demorado. "O ideal é evitarmos situações que podem gerar um desconforto futuro como forma de preservação de nós mesmos e de nossas relações humanas", era a voz da analista misturando-se à água quente que amolecia os ombros duros de inconsciente aflição. "E quando já aconteceu, como consertar?" "Não tem jeito, não se desfaz o que já foi feito: o tempo apaga essas marcas, e a sua conduta pessoal cria novas verdades e perspectivas." Enrolado na toalha, ligou para a senhora. Tudo bem. Respirou aliviado, riu ao pensar na sua falta de sorte, concluiu que tinha sorte afinal e foi jogar bola pensando no prejuízo que engordaria o bolso do lanterneiro. Tomou cachaça, foi ao cinema e pensou que é isso aí, que não foi tão mal assim, que viver o presente tem dessas coisas... que papel timbrado conta a história que ele quiser contar, sem choro, vela ou testemunha. Relatou o caso a uma meia dúzia, guardou as opiniões no lado esquerdo da camisa e quis que houvesse gente em casa. Adormeceu ao som da televisão, coração sussurrando notas preocupadas, cabeça doendo de angústia.
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
Dez minutos
O que dá pra escrever em dez minutos? Talvez alguma impressão sobre o que me intriga mais... É só parar o relógio por uns momentos pra lembrar que tenho me sentido estranha, confusa até, querendo ser uma coisa só, engolir minhas preocupações com farinha, não pensar em nada, ir vivendo mesmo, correndo, comendo, fazendo o que eu acho certo e me convencendo de que a vileza alheia é exatamente o que é: alheia. Em dez minutos piso no chão quente da praia, sonho que corro sem cansar pela areia fofa e fico ansiando por mais um pouco, e peço a Deus que por favor me leve pra pescar num lago que tenha peixes e jogue a rede por mim. Em dez minutos eu tomo banho e choro baixinho sem saber sabendo de onde vem esse quê de desespero com cara de desesperança; desejo em silêncio que as pessoas boas tenham uma vida boa, que as ruins aprendam a viver direito, que as fracas queiram com todas as forças resistir às fraquezas terrenas - que a nossa carne seja nobre de tão forte, que o nosso espírito tome a frente do que nos resta e, como o doce Falkor, irrompa pelas nuvens da superficialidade que assola nosso tempo e me convença a confiar em gente grande, a acreditar que há outros como eu, que veem o que é bonito sem precisarem olhar, que aprenderam a apreciar a própria companhia, que respeitam o outro porque sabem se respeitar, que comemoram cada nascer do dia, que caem sempre mas dificilmente no mesmo lugar. Em dez minutos eu passo os olhos por esse grande livro de memórias com nome difícil e percorro as tantas ruas da minha vida, hoje vazias. Novas ruas se estendem sob meus pés descalços e eu fico aqui pensando que em dez minutos daria pra chegar esbaforida àquela praça, dizer eu te amo e parar de ouvir o rádio, o som do motor... pousar o corpo em seu coração falante até o medo se dissolver na respiração - sobre a cabeça luz, paz e o canto dos passarinhos.
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