domingo, 29 de novembro de 2009

We're gonna change the world

Convido você a mudar de comportamento. Vamos parar de reproduzir as atitudes alheias que não levam a nada? Não é fácil, mas é necessário. Eu, por exemplo, falo muito, muito mal, muitas vezes. Coisas que não fazem sentido, coisas das quais mais tarde me arrependo. Percebo que falo o que penso das pessoas sem que elas tenham a chance de mostrarem-se diferentes. Falo o que penso, e penso tão diferente a cada instante... Reprovo comportamentos e admiro valores, lado a lado. Todo mundo tem seu lado ruim, todo mundo tem seu lado bom. Eu enxergo os dois, e falo. Todo mundo tem seus defeitos, quase todos têm qualidades inegáveis - eu percebo. Aos poucos quem não me faz bem vai procurando seu rumo, sem choro nem vela: uma questão de qualidade de vida. E para acompanhar esse processo, que tal transformar um comentário ruim em um bom? Afinal, comentários ruins enchem o estômago de sapos pesados, trazem culpa. No final, as pessoas nunca são tão ruins quanto parecem (pelo menos boa parte delas). O problema é meu reflexo nem sempre apurado, às vezes sem nexo: o que eu reflito, eu devolvo. Indiferença, amor, alegria, rudeza. Tento na medida do possível devolver a falsidade; nem sempre consigo - é uma senhora virtude!... Então aí vai um convite: esqueçamos os confidentes que espalharam confidências, perdoemos aos fracos cuja verdade não tem vez, louvemos os amigos de aluguel pelos serviços prestados, ignoremos a quem não consegue querer-nos bem, porque querer bem aos outros é um dom. Vamos trocar um comentário ruim por um bom às segundas-feiras. Na terceira semana tente dobrar esse número e aumente um comentário a cada semana. Depois do quinto, passe pra terça. É um exercício, vamos tentar? Se não aguentar, beba leite... e comece de novo. Vou começar, você vem? Malhar a alma pode ser tão tentador quanto malhar o outro.

We're gonna change the world

Convido você a mudar de comportamento. Vamos parar de reproduzir as atitudes alheias que não levam a nada? Não é fácil, mas é necessário. Eu, por exemplo, falo muito, muito mal, muitas vezes. Coisas que não fazem sentido, coisas das quais mais tarde me arrependo. Percebo que falo o que penso das pessoas sem que elas tenham a chance de mostrarem-se diferentes. Falo o que penso, e penso tão diferente a cada instante... Reprovo comportamentos e admiro valores, lado a lado. Todo mundo tem seu lado ruim, todo mundo tem seu lado bom. Eu enxergo os dois, e falo. Todo mundo tem seus defeitos, quase todos têm qualidades inegáveis - eu percebo. Aos poucos quem não me faz bem vai procurando seu rumo, sem choro nem vela: uma questão de qualidade de vida. E para acompanhar esse processo, que tal transformar um comentário ruim em um bom? Afinal, comentários ruins enchem o estômago de sapos pesados, trazem culpa. No final, as pessoas nunca são tão ruins quanto parecem (pelo menos boa parte delas). O problema é meu reflexo nem sempre apurado, às vezes sem nexo: o que eu reflito, eu devolvo. Indiferença, amor, alegria, rudeza. Tento na medida do possível devolver a falsidade; nem sempre consigo - é uma senhora virtude!... Então aí vai um convite: esqueçamos os confidentes que espalharam confidências, perdoemos aos fracos cuja verdade não tem vez, louvemos os amigos de aluguel pelos serviços prestados, ignoremos a quem não consegue querer-nos bem, porque querer bem aos outros é um dom. Vamos trocar um comentário ruim por um bom às segundas-feiras. Na terceira semana tente dobrar esse número e aumente um comentário a cada semana. Depois do quinto, passe pra terça. É um exercício, vamos tentar? Se não aguentar, beba leite... e comece de novo. Vou começar, você vem? Malhar a alma pode ser tão tentador quanto malhar o outro.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Inefável

Hoje os mundos se encontram, as palavras se perdem.
Quando te conheci senti uma coisa doida, quase que como tudo na vida. Falei por nós dois, e um belo dia me veio à cabeça que você não ter me dito nada fez toda a diferença. O vento sopra suave, o calor é intenso, e nessa alegria abafada eu te procuro, te imagino. Penso no seu sorriso, na sua saúde, na sua tentativa de viver acuado, sufocado por desejos que na verdade, na verdade mesmo, nunca foram seus. Te penso, sem me dar conta te desejo muitíssimo por tantos infindáveis momentos... Dessa forma te alcanço. Recupero as formas do seu andar, as cores do seu abraço. Enxergo com toda clareza a intensidade do seu sono. Quisera Deus que fosse eu, quisera eu que na placidez desse dia morno te deixasse ir, com juízo, com cuidado, para algum lugar que te faça feliz... Talvez outro dia, mas não hoje. Hoje estamos conectados; é mais um daqueles dias em que você parece estar aqui. Amanhã certamente será diferente - energia nova, grandes expectativas. Amanhã faremos os dois outras coisas, ocuparemos nosso pensamento com outras pessoas, participaremos de outras ocasiões. Iremos à luta com unhas e dentes, amaremos estarmos vivos, sentiremos o clima da estação na pele fina do rosto. Amanhã não farei parte do seu capítulo, nem em sonho, mas hoje... Hoje eu mais uma vez me repito quando digo que o tempo parou de passar. Não há porque chorar ou se divertir. É quase tão louco quanto tudo na vida ser invadida por essa esperança involuntária. Hoje o episódio não conta - estamos de férias dessa paródia malcontada que é a nossa vida. Pra onde quer que o planeta gire, hoje os mundos se encontraram e as palavras se perderam. Até amanhã...

Inefável

Hoje os mundos se encontram, as palavras se perdem.
Quando te conheci senti uma coisa doida, quase que como tudo na vida. Falei por nós dois, e um belo dia me veio à cabeça que você não ter me dito nada fez toda a diferença. O vento sopra suave, o calor é intenso, e nessa alegria abafada eu te procuro, te imagino. Penso no seu sorriso, na sua saúde, na sua tentativa de viver acuado, sufocado por desejos que na verdade, na verdade mesmo, nunca foram seus. Te penso, sem me dar conta te desejo muitíssimo por tantos infindáveis momentos... Dessa forma te alcanço. Recupero as formas do seu andar, as cores do seu abraço. Enxergo com toda clareza a intensidade do seu sono. Quisera Deus que fosse eu, quisera eu que na placidez desse dia morno te deixasse ir, com juízo, com cuidado, para algum lugar que te faça feliz... Talvez outro dia, mas não hoje. Hoje estamos conectados; é mais um daqueles dias em que você parece estar aqui. Amanhã certamente será diferente - energia nova, grandes expectativas. Amanhã faremos os dois outras coisas, ocuparemos nosso pensamento com outras pessoas, participaremos de outras ocasiões. Iremos à luta com unhas e dentes, amaremos estarmos vivos, sentiremos o clima da estação na pele fina do rosto. Amanhã não farei parte do seu capítulo, nem em sonho, mas hoje... Hoje eu mais uma vez me repito quando digo que o tempo parou de passar. Não há porque chorar ou se divertir. É quase tão louco quanto tudo na vida ser invadida por essa esperança involuntária. Hoje o episódio não conta - estamos de férias dessa paródia malcontada que é a nossa vida. Pra onde quer que o planeta gire, hoje os mundos se encontraram e as palavras se perderam. Até amanhã...

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Um pouco louco

Era uma vez uma menina que queria achar a chave pra tudo. Descobriu que a chave estava num lugar muito pertinho dela e ficou frustrada por ter demorado a descobrir. Num ímpeto, jogou a dita cuja pra lá de onde jamais se acha alguma coisa e foi dormir. Sonhou com travesseiros, lagartixas e um olho bem grande parado no meio do sonho, escancarado, olhando pra ela. Fez uma força muito grande pra fechar o olhão sinistro, mas ele estava preso a uma tomada e, na confusão, se soltou. Depois desse dia ela tentou me convencer de que sua vida está bem melhor, de que ela agora sabe da verdade. Eu a vejo falar sozinha e acho engraçado; os médicos acham patológico; os pais acham louco. Ela vive hoje em um local isolado. Ela fala comigo, ela me conhece, como isso pode ser louco? Como se enxerga a loucura, como se mede? Gosta de flores e coelhos, nunca fez mal a nenhum dos dois. Se ela é calma, por que remédios para ansiedade? Se ela é feliz consigo mesma, por que remédios para depressão? As pessoas não a compreendem. Linda, doce... e só. Tudo que ela queria era achar a chave para si. Soube um belo dia que a chave para si a separava do mundo. Não teve medo, não havia o que perder. Vive longe dos homens, mas depende deles para as coisas mais mundanas. Não se dá conta. É amada por alguém que não importa, coloca roupas que independem da hora certa. Vive sem estado civil, sem bandeira. Dorme e acorda. Há muito tempo deixou de sonhar. Conversa com os caracóis dos seus longos cabelos, e isso lhe basta. Como seria se isso bastasse pra você? Um pouco louco, né? Não se acanhe! É assim que a banda toca...

Um pouco louco

Era uma vez uma menina que queria achar a chave pra tudo. Descobriu que a chave estava num lugar muito pertinho dela e ficou frustrada por ter demorado a descobrir. Num ímpeto, jogou a dita cuja pra lá de onde jamais se acha alguma coisa e foi dormir. Sonhou com travesseiros, lagartixas e um olho bem grande parado no meio do sonho, escancarado, olhando pra ela. Fez uma força muito grande pra fechar o olhão sinistro, mas ele estava preso a uma tomada e, na confusão, se soltou. Depois desse dia ela tentou me convencer de que sua vida está bem melhor, de que ela agora sabe da verdade. Eu a vejo falar sozinha e acho engraçado; os médicos acham patológico; os pais acham louco. Ela vive hoje em um local isolado. Ela fala comigo, ela me conhece, como isso pode ser louco? Como se enxerga a loucura, como se mede? Gosta de flores e coelhos, nunca fez mal a nenhum dos dois. Se ela é calma, por que remédios para ansiedade? Se ela é feliz consigo mesma, por que remédios para depressão? As pessoas não a compreendem. Linda, doce... e só. Tudo que ela queria era achar a chave para si. Soube um belo dia que a chave para si a separava do mundo. Não teve medo, não havia o que perder. Vive longe dos homens, mas depende deles para as coisas mais mundanas. Não se dá conta. É amada por alguém que não importa, coloca roupas que independem da hora certa. Vive sem estado civil, sem bandeira. Dorme e acorda. Há muito tempo deixou de sonhar. Conversa com os caracóis dos seus longos cabelos, e isso lhe basta. Como seria se isso bastasse pra você? Um pouco louco, né? Não se acanhe! É assim que a banda toca...

sábado, 21 de novembro de 2009

Dom Quixote

Deus misericordioso, o que fizeram com a idéia, com a mocréia, com a centopéia? Coitadinhas, ficaram tão tristes... arrancaram delas seu brilho, tiraram delas toda a sua força. Agora elas se chamam ideia, mocreia, centopeia. Estão xoxinhas, deprimidas. A mocreia está sem ideia, a centopeia até resolveu se compadecer da mocreia, já que além da condição lhe falta agora um pedaço. O vilão que realizou essa barbaridade não pensou sequer por um segundo na natureza dessas garotas. Uma boa idéia precisa de força pra vingar; uma centopéia precisa de força ao colocar aquilo tudo pra funcionar. E a mocréia precisa de muita força pra ter uma boa idéia e sair da zona das centopéicas desventuras. Eu acredito em vocês, palavras, e nunca hei de tirar-lhes a peruca de Sansão, ainda que ela lembre mais o cabelo do Cebolinha... Avante! Branca, Branca, Leone, Leone, Leone!

Dom Quixote

Deus misericordioso, o que fizeram com a idéia, com a mocréia, com a centopéia? Coitadinhas, ficaram tão tristes... arrancaram delas seu brilho, tiraram delas toda a sua força. Agora elas se chamam ideia, mocreia, centopeia. Estão xoxinhas, deprimidas. A mocreia está sem ideia, a centopeia até resolveu se compadecer da mocreia, já que além da condição lhe falta agora um pedaço. O vilão que realizou essa barbaridade não pensou sequer por um segundo na natureza dessas garotas. Uma boa idéia precisa de força pra vingar; uma centopéia precisa de força ao colocar aquilo tudo pra funcionar. E a mocréia precisa de muita força pra ter uma boa idéia e sair da zona das centopéicas desventuras. Eu acredito em vocês, palavras, e nunca hei de tirar-lhes a peruca de Sansão, ainda que ela lembre mais o cabelo do Cebolinha... Avante! Branca, Branca, Leone, Leone, Leone!

Conspiração

Ontem eu cantei depois de muito tempo. Foi despretensioso, foi gostoso... singular. Um pouco peculiar, é verdade, mas de um jeito estranho o universo parece conspirar para que o microfone caia na minha mão. Ontem eu respirei e peguei o tom sem saber explicar nada, sem estudo algum, quase sem educação. Meu corpo sorriu, minha cabeça voou longe, meu coração derramou cada uma daquelas doces palavras, de Chico, de Paulinho, de Cartola... Não é que o samba é a coisa mais bonita desse mundo? Minha boca se abriu sem eu pedir, e dela saíram os versos mágicos que embalam a cadência bonita. Demais. É engraçado como meu organismo reage ao absorver boa música. Me imagino como um daqueles personagens de desenho animado, que sentem um cheiro gostoso ou vêem alguém muito interessante e começam a flutuar naquela direção. Num instante estou lá, pentelhando os músicos. Não quero só ouvir, preciso participar, fico querendo cantar. Quase que desesperadamente. E quando o microfone cai na minha mão, ah! Sinto que minha vida está resolvida, meu segredo descoberto: é como se tivesse vindo ao mundo só pra viver de poesia, pra cantar a poesia... pra fazer isso e aquilo.

Conspiração

Ontem eu cantei depois de muito tempo. Foi despretensioso, foi gostoso... singular. Um pouco peculiar, é verdade, mas de um jeito estranho o universo parece conspirar para que o microfone caia na minha mão. Ontem eu respirei e peguei o tom sem saber explicar nada, sem estudo algum, quase sem educação. Meu corpo sorriu, minha cabeça voou longe, meu coração derramou cada uma daquelas doces palavras, de Chico, de Paulinho, de Cartola... Não é que o samba é a coisa mais bonita desse mundo? Minha boca se abriu sem eu pedir, e dela saíram os versos mágicos que embalam a cadência bonita. Demais. É engraçado como meu organismo reage ao absorver boa música. Me imagino como um daqueles personagens de desenho animado, que sentem um cheiro gostoso ou vêem alguém muito interessante e começam a flutuar naquela direção. Num instante estou lá, pentelhando os músicos. Não quero só ouvir, preciso participar, fico querendo cantar. Quase que desesperadamente. E quando o microfone cai na minha mão, ah! Sinto que minha vida está resolvida, meu segredo descoberto: é como se tivesse vindo ao mundo só pra viver de poesia, pra cantar a poesia... pra fazer isso e aquilo.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Either way

I have always liked what I don't know.
This could be a major mistake
or the key to a precious world.
Either way,
I just wanted you to know
in case you grow old
and never quite get
why I have fallen in love
and shown from day one
I wanted to have a go.
You could have let it flow
but you preferred to stay away.
Let's just say
I loved you so
when I didn't know you...
I've learned to throw up my hands
and live one new adventure at a time
I still like what I don't know
But, after all, you're old news;
There'll always be a better place to go...

Either way

I have always liked what I don't know.
This could be a major mistake
or the key to a precious world.
Either way,
I just wanted you to know
in case you grow old
and never quite get
why I have fallen in love
and shown from day one
I wanted to have a go.
You could have let it flow
but you preferred to stay away.
Let's just say
I loved you so
when I didn't know you...
I've learned to throw up my hands
and live one new adventure at a time
I still like what I don't know
But, after all, you're old news;
There'll always be a better place to go...

domingo, 15 de novembro de 2009

Passagem

Entro mar adentro
subo ladeira adiante
meu coração pulsa mais forte do que antes.
O corpo para, mingua, se abate
luta sem resultado aparente
é fundamental que eu não me espante
e é natural que eu me afaste
do mundo, ali deitado
jurado de morte
jogado ao sal e ao sol da própria sorte.
Penso em comandar um levante
Lembro-me de dom Quixote
do Grande Mentecapto
acho tudo aquilo fascinante
Sorrio e num sopro a vida se esvai.
Quero pedir a eles que não chorem
que a dor passou, que o mal se foi
que a luz que eu vejo agora
me acalma, me restaura
me leva a um lugar impressionante.

Passagem

Entro mar adentro
subo ladeira adiante
meu coração pulsa mais forte do que antes.
O corpo para, mingua, se abate
luta sem resultado aparente
é fundamental que eu não me espante
e é natural que eu me afaste
do mundo, ali deitado
jurado de morte
jogado ao sal e ao sol da própria sorte.
Penso em comandar um levante
Lembro-me de dom Quixote
do Grande Mentecapto
acho tudo aquilo fascinante
Sorrio e num sopro a vida se esvai.
Quero pedir a eles que não chorem
que a dor passou, que o mal se foi
que a luz que eu vejo agora
me acalma, me restaura
me leva a um lugar impressionante.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Conto do Abílio

Tinha medo. Não sabia se era só uma transa ou se rolava sentimento. Tentava levar numa boa, dizia pelos cantos que não misturar as coisas era uma iniciativa sua. Saía pela noite e pensava nela, mas não podia se abrir. Quem é que iria entender? Não queria nada daquilo, havia educado seus instintos para entregar-se a alguém completamente diferente. Ela era linda, o que era aquilo... Cheirosa, macia - um querer absolutamente infundado. O que seus amigos iriam dizer, como as pessoas iriam responder a toda aquela miscelânea? Olhava-se no espelho, convencia-se de que sua missão no mundo não era a de casar e ter filhos. Chorava no chuveiro - tinha que esquecer, não era uma questão de escolha. A confusão virava-lhe os olhos, pinçava o nervo ciático. Virar folha naquela altura do campeonato já não fazia sentido. Ponderava e bebia, sentia-se angustiado pela pressão que havia colocado em si próprio. Considerou viajar pelo mundo, levá-la consigo, viver uma vida que ninguém julgasse. Ouvia músicas e em pouco tempo estava faminto de desejo. Ela parecia não se importar nem um pouco com a situação - muitos diriam inclusive que ela mal sabia o que se passava do outro lado da linha. Ele esperava, ela ligava, eles se viam, se sentiam, suavam, sorriam... respiravam... se despediam. Como conviver com esse trauma? Ele marcava médicos pra ver a dor de estômago, a mudança na urina, a dor de cabeça, as taquicardias, as urticárias. Ela ligava e dava risadas, contava piadas, brincava com sua hipocondria, sempre natural, sempre a saber notícias. Uma amiga. Amiga? Amiga ou PF? Amante? Possibilidade? !@#$%¨&*!!! Um dia ele conversou longamente com um psicólogo em um jantar. O profissional, de forma tranquila e pontual, assinalou em seu comportamento uma discrepância singular. "Olha, eu já conversei com muita gente, Abílio, já vi muita coisa, mas é a primeira vez que alguém me fala que está encontrando dificuldade para manter-se gay. (...) Faz o seguinte: já que a questão com a garota é complicada pra você, porque parece que está havendo um certo envolvimento, só tem um jeito: coloque as cartas em cima da mesa, fale o que você sente. Como ela está a fim de curtição, é natural que se afaste. Vai doer no princípio, mas você vai se safar da maneira mais tranquila. Confie em mim." Aquele camarada era a chave de cadeia em pessoa, o bigodinho oleoso nas pontas assinava o diploma de cafa. Mas não é que ele tinha razão? Será? Não esperou muito. Ela ligou, ele marcou, lá ela estava. Ele a pediu em casamento; ela aceitou. Casaram-se logo: os pais adoraram, todo o resto estranhou. Reuniu os amigos e mencionou a pressão dos pais já idosos. Para a mãe, disse que havia se cansado de sofrer preconceito. Para o pai, disse que queria dar-lhe um neto. Para Raquel, contou do seu amor e confessou que, secretamente, a faria a mulher mais feliz do mundo. Ela riu, não disse nada. Em segundos lá estavam, emaranhados nos lençóis pela milésima vez.

Conto do Abílio

Tinha medo. Não sabia se era só uma transa ou se rolava sentimento. Tentava levar numa boa, dizia pelos cantos que não misturar as coisas era uma iniciativa sua. Saía pela noite e pensava nela, mas não podia se abrir. Quem é que iria entender? Não queria nada daquilo, havia educado seus instintos para entregar-se a alguém completamente diferente. Ela era linda, o que era aquilo... Cheirosa, macia - um querer absolutamente infundado. O que seus amigos iriam dizer, como as pessoas iriam responder a toda aquela miscelânea? Olhava-se no espelho, convencia-se de que sua missão no mundo não era a de casar e ter filhos. Chorava no chuveiro - tinha que esquecer, não era uma questão de escolha. A confusão virava-lhe os olhos, pinçava o nervo ciático. Virar folha naquela altura do campeonato já não fazia sentido. Ponderava e bebia, sentia-se angustiado pela pressão que havia colocado em si próprio. Considerou viajar pelo mundo, levá-la consigo, viver uma vida que ninguém julgasse. Ouvia músicas e em pouco tempo estava faminto de desejo. Ela parecia não se importar nem um pouco com a situação - muitos diriam inclusive que ela mal sabia o que se passava do outro lado da linha. Ele esperava, ela ligava, eles se viam, se sentiam, suavam, sorriam... respiravam... se despediam. Como conviver com esse trauma? Ele marcava médicos pra ver a dor de estômago, a mudança na urina, a dor de cabeça, as taquicardias, as urticárias. Ela ligava e dava risadas, contava piadas, brincava com sua hipocondria, sempre natural, sempre a saber notícias. Uma amiga. Amiga? Amiga ou PF? Amante? Possibilidade? !@#$%¨&*!!! Um dia ele conversou longamente com um psicólogo em um jantar. O profissional, de forma tranquila e pontual, assinalou em seu comportamento uma discrepância singular. "Olha, eu já conversei com muita gente, Abílio, já vi muita coisa, mas é a primeira vez que alguém me fala que está encontrando dificuldade para manter-se gay. (...) Faz o seguinte: já que a questão com a garota é complicada pra você, porque parece que está havendo um certo envolvimento, só tem um jeito: coloque as cartas em cima da mesa, fale o que você sente. Como ela está a fim de curtição, é natural que se afaste. Vai doer no princípio, mas você vai se safar da maneira mais tranquila. Confie em mim." Aquele camarada era a chave de cadeia em pessoa, o bigodinho oleoso nas pontas assinava o diploma de cafa. Mas não é que ele tinha razão? Será? Não esperou muito. Ela ligou, ele marcou, lá ela estava. Ele a pediu em casamento; ela aceitou. Casaram-se logo: os pais adoraram, todo o resto estranhou. Reuniu os amigos e mencionou a pressão dos pais já idosos. Para a mãe, disse que havia se cansado de sofrer preconceito. Para o pai, disse que queria dar-lhe um neto. Para Raquel, contou do seu amor e confessou que, secretamente, a faria a mulher mais feliz do mundo. Ela riu, não disse nada. Em segundos lá estavam, emaranhados nos lençóis pela milésima vez.

Just in case

É tão interessante julgar, especular, achar e desachar, simplesmente sair falando pelos cotovelos da vida do outro sem saber da missa a metade... Não dói, não fede, não faz barulho, não ME incomoda. Caso clássico: a amiga que tem um namorado e que conta tudo pra ele. O namorado não sabe nada de você, deve ter te visto umas três vezes na vida, não tem a menor intimidade - e com certeza nunca vai ter porque você tem bom senso suficiente pra manter sua distância - e a amiga vem te contar que o namorado acha que você é assim e assado, que faz isso e aquilo. Se ela te conhece bem, certamente não vai querer unir vocês dois no mesmo local num futuro próximo: imaginem que chato o namorado ser questionado na frente da amiga. Não mexe com quem tá quieto... Outra coisa bem recorrente são comentários não perguntando o que eu quis dizer, mas afirmando as mais variadas coisas. Já recebi umas mensagens de indignação e até de sarcasmo pra rebater o que eu supostamente teria escrito sobre alguém específico. O problema de quem não escreve é não saber como o mecanismo funciona - se é que existe um... Cada sujeito, cada caso, cada poema, é baseado nas próprias impressões da pessoa sobre o mundo e os demais seres. É claro que uma personagem pode ter muitas características de uma pessoa, mas tem várias de mil outras. A mente de quem escreve não descansa um minuto. A gente mistura o livro que leu ontem com o comentário da moça no ponto de ônibus, com a palhaçada que rolou com um amigo seu, com a dor e o prazer, o poder, a submissão e a fantasia, a zona de combate e a vontade de bater sem dó em quem faz uma sacanagem, os degraus de uma igreja e a superficialidade das pessoas. O que eu quero falar eu acabo falando - mesmo que demore um pouco, mesmo que eu me estrepe por não ter nada a ver com isso, mesmo que doa e me incomode. Nesse meio-tempo eu escrevo. E exerço com louvor minha humanidade: julgo os livros pela capa, abro a boca pra sorrir e criticar, faço careta quando não consigo deixar de expressar o intragável e o insustentável, ainda que todas essas mazelas também existam em mim, ainda que eu fale do outro para esquecer um pouco quem eu sou. Sou ciumenta SIM, amo meu marido SIM, odeio que liguem pra ele SIM e sou impaciente e mal-humorada com os adultos. Para relembrar a quem me conhece e polidamente avisar a quem acha que sim, aí vai meu bom e velho bordão, a primeira coisa que eu digo, antes mesmo de falar meu nome: "Num viaja nimim, não!" Eu sou eu, você é você - ficamos assim.

Just in case

É tão interessante julgar, especular, achar e desachar, simplesmente sair falando pelos cotovelos da vida do outro sem saber da missa a metade... Não dói, não fede, não faz barulho, não ME incomoda. Caso clássico: a amiga que tem um namorado e que conta tudo pra ele. O namorado não sabe nada de você, deve ter te visto umas três vezes na vida, não tem a menor intimidade - e com certeza nunca vai ter porque você tem bom senso suficiente pra manter sua distância - e a amiga vem te contar que o namorado acha que você é assim e assado, que faz isso e aquilo. Se ela te conhece bem, certamente não vai querer unir vocês dois no mesmo local num futuro próximo: imaginem que chato o namorado ser questionado na frente da amiga. Não mexe com quem tá quieto... Outra coisa bem recorrente são comentários não perguntando o que eu quis dizer, mas afirmando as mais variadas coisas. Já recebi umas mensagens de indignação e até de sarcasmo pra rebater o que eu supostamente teria escrito sobre alguém específico. O problema de quem não escreve é não saber como o mecanismo funciona - se é que existe um... Cada sujeito, cada caso, cada poema, é baseado nas próprias impressões da pessoa sobre o mundo e os demais seres. É claro que uma personagem pode ter muitas características de uma pessoa, mas tem várias de mil outras. A mente de quem escreve não descansa um minuto. A gente mistura o livro que leu ontem com o comentário da moça no ponto de ônibus, com a palhaçada que rolou com um amigo seu, com a dor e o prazer, o poder, a submissão e a fantasia, a zona de combate e a vontade de bater sem dó em quem faz uma sacanagem, os degraus de uma igreja e a superficialidade das pessoas. O que eu quero falar eu acabo falando - mesmo que demore um pouco, mesmo que eu me estrepe por não ter nada a ver com isso, mesmo que doa e me incomode. Nesse meio-tempo eu escrevo. E exerço com louvor minha humanidade: julgo os livros pela capa, abro a boca pra sorrir e criticar, faço careta quando não consigo deixar de expressar o intragável e o insustentável, ainda que todas essas mazelas também existam em mim, ainda que eu fale do outro para esquecer um pouco quem eu sou. Sou ciumenta SIM, amo meu marido SIM, odeio que liguem pra ele SIM e sou impaciente e mal-humorada com os adultos. Para relembrar a quem me conhece e polidamente avisar a quem acha que sim, aí vai meu bom e velho bordão, a primeira coisa que eu digo, antes mesmo de falar meu nome: "Num viaja nimim, não!" Eu sou eu, você é você - ficamos assim.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Diferença...

Queria sair
ir pra onde o vento não sopre
lá onde o sol não me ache...
queria parar de ouvir
os lamentos que me cercam
e acreditar nas sombras que de longe
me enfraquecem, me sucateiam
Não há mais o que ver nem em que crer
não há mais o que temer
e ainda assim tenho medo
de acordar e não ser mais eu
de esquecer a melodia,
de perder a hora para toda
e qualquer coisa.
Queria sair e tenho que entrar.
Tenho que pegar a chave
caminhar até a porta
abri-la sem nenhuma vontade
acender as luzes e sorrir.
Há quem diga que um dia
o hoje será uma oportunidade
de se pensar o amanhã.
Até lá a gente caminha
nada de braçada na discórdia
reza e pede pela indiferença.

Diferença...

Queria sair
ir pra onde o vento não sopre
lá onde o sol não me ache...
queria parar de ouvir
os lamentos que me cercam
e acreditar nas sombras que de longe
me enfraquecem, me sucateiam
Não há mais o que ver nem em que crer
não há mais o que temer
e ainda assim tenho medo
de acordar e não ser mais eu
de esquecer a melodia,
de perder a hora para toda
e qualquer coisa.
Queria sair e tenho que entrar.
Tenho que pegar a chave
caminhar até a porta
abri-la sem nenhuma vontade
acender as luzes e sorrir.
Há quem diga que um dia
o hoje será uma oportunidade
de se pensar o amanhã.
Até lá a gente caminha
nada de braçada na discórdia
reza e pede pela indiferença.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Contos de Natal

---Era uma vez um senhor que se casou com sua colega de escola. Nunca haviam imaginado que poderiam ser tão felizes. Realmente o foram, até que Leila, a colega de escola, faleceu em um acidente de carro. Na verdade, como contaram depois, o acidente foi provocado pela morte da própria Leila dentro do carro. Ela voltava de seu curso de bordado com a amiga Nice, quando, depois de três perguntas não respondidas, João, o filho caçula de Nice, disse à mãe que dona Leila não iria responder porque tinha dormido de tanto frio. Nice virou-se para olhar a amiga e bateu em uma árvore. João sobreviveu para contar a história.
---O nome do senhor era Armando. Aposentado há alguns anos, vivia para agradar a esposa. Levava e buscava a companheira em todos os cursos, em todos os lugares. E olha que eram muitos. Seu Armando nunca reclamou, seus olhinhos azuis brilhavam ao avistar sua pequena - assim ele a chamava. Sua vida terminou quando ligaram do hospital para dar-lhe a notícia. Ele estava de cama, com uma febre altíssima, e por isso dona Leila havia convencido o marido de que ele deveria descansar; ela iria ao curso de bordado com a amiga e vizinha. De que valia descansar agora? Quantas coisas ele quis dizer, quantas coisas quis que fizessem juntos... Andava desorientado pela casa, recolhendo tudo que ainda tinha seu cheiro, espremia os olhos para lembrar-se de cada sorriso, de cada traço presente no rosto dela. Apertava as mãos trêmulas e imaginava segurar a mãozinha quente de dona Leila, sua colega de escola.
---A vida que terminou não podia terminar na verdade. Seu Armando era muito católico e sabia que não poderia jamais atentar contra a própria vida. O que ele decidiu fazer foi bem simples - sentou... e esperou. Rezava fervorosamente e pedia a dona Leila para vir buscá-lo, todos os dias. Fez contato com outras dimensões, organizava reuniões mediúnicas na sala de sua casa. E, claro, sempre recorria ao seu tercinho bento na hora de dormir.
---Passados alguns meses, começou um dia a ouvir sua voz, bem ao longe. Rezava e pedia "Meu amor, minha pequena, me leve com você". Ainda não conseguia entender o que lhe respondia a vozinha de dona Leila. Aos poucos, ela foi se tornando mais firme, mais próxima, mas ainda assim seu Armando nada compreendia. Dona Leila apareceu num dia de chuva, no meio da sala de jantar. "Graças a Deus! O Senhor seja louvado! Minha pequena veio me buscar, hosana nas alturas!" Já ia se levantando da poltrona, quando dona Leila o interrompeu com um gesto brusco. "Olha, bem, infelizmente você não pode vir comigo para o reino dos céus". Seu Armando caiu na poltrona, incrédulo. "O que é que você está dizendo, pequena? Você não está aqui pra me buscar? Já não sofri o suficiente? Tudo que eu quero é ficar do seu lado por toda a eternidade." Dona Leila respirou fundo: "Pois é, bem, mas não vai dar." Seu Armando, paralisado, tentava decifrar a feição neutra da esposa, aquele rosto tão agradável... que nada dizia. Depois de alguns segundos, dona Leila tomou fôlego e falou de uma vez: "Você não pode subir comigo ao reino dos céus porque você me traiu, Armando." Pausa. Longa. O pobre homem achou que iria enfartar ali mesmo. Tentou buscar dentro da cabeça uma única brecha em sua conduta, já que havia dedicado toda uma vida àquela criatura que agora o acusava à queima-roupa. "Quando a gente morre, recebe um filme sobre nossas vidas, sabe? Nesse filme vi você, em 1958, de mão dada com a Wandinha da sorveteria dentro do cinema." Seu Armando olhava a mulher, perplexo. "A gente já namorava, Armando." Dona Leila tentou segurar o choro. "Enfim, Deus, Senhor misericordioso, me perguntou se eu te perdoaria por isso, essa sendo a condição para que você viesse a me acompanhar na eternidade." Pausa. "A resposta você já sabe." Choque. 10.000 Volts.
---Seu Armando, 69 anos, bonitão e cheio de vida - e de dinheiro - não acreditava no que ouvia. Ficou quieto, enterrado em sua poltrona, por alguns minutos. A mulher olhava pela janela, também em silêncio. "Quer dizer que você vem lá do além pra me comunicar que não vai me levar." "Isso mesmo." O homem levantou-se devagar, com certa dificuldade, e foi até o telefone. "Espere aí." Ligou para Tânia, uma gostosa que participava das reuniões mediúnicas e dava bem em cima dele. Em cinco minutos o interfone tocava. "Agora pode ir, tenho visita." Dona Leila, incrédula, assistiu ao momento em que a porta se abriu e aquela ruiva escultural entrou sexy e sorrateira como uma tigresa.
---Seu Armando morreu pouco depois; sofreu infarto fulminante durante o coito. Dizem seus companheiros mediúnicos que foi pra um lugar muito quente, cheio de festas, música alta e gatinhas de biquíni. Nunca na vida ele havia estado em um lugar como aquele. Tenho pra mim que ele não achou ruim, não.

Contos de Natal

---Era uma vez um senhor que se casou com sua colega de escola. Nunca haviam imaginado que poderiam ser tão felizes. Realmente o foram, até que Leila, a colega de escola, faleceu em um acidente de carro. Na verdade, como contaram depois, o acidente foi provocado pela morte da própria Leila dentro do carro. Ela voltava de seu curso de bordado com a amiga Nice, quando, depois de três perguntas não respondidas, João, o filho caçula de Nice, disse à mãe que dona Leila não iria responder porque tinha dormido de tanto frio. Nice virou-se para olhar a amiga e bateu em uma árvore. João sobreviveu para contar a história.
---O nome do senhor era Armando. Aposentado há alguns anos, vivia para agradar a esposa. Levava e buscava a companheira em todos os cursos, em todos os lugares. E olha que eram muitos. Seu Armando nunca reclamou, seus olhinhos azuis brilhavam ao avistar sua pequena - assim ele a chamava. Sua vida terminou quando ligaram do hospital para dar-lhe a notícia. Ele estava de cama, com uma febre altíssima, e por isso dona Leila havia convencido o marido de que ele deveria descansar; ela iria ao curso de bordado com a amiga e vizinha. De que valia descansar agora? Quantas coisas ele quis dizer, quantas coisas quis que fizessem juntos... Andava desorientado pela casa, recolhendo tudo que ainda tinha seu cheiro, espremia os olhos para lembrar-se de cada sorriso, de cada traço presente no rosto dela. Apertava as mãos trêmulas e imaginava segurar a mãozinha quente de dona Leila, sua colega de escola.
---A vida que terminou não podia terminar na verdade. Seu Armando era muito católico e sabia que não poderia jamais atentar contra a própria vida. O que ele decidiu fazer foi bem simples - sentou... e esperou. Rezava fervorosamente e pedia a dona Leila para vir buscá-lo, todos os dias. Fez contato com outras dimensões, organizava reuniões mediúnicas na sala de sua casa. E, claro, sempre recorria ao seu tercinho bento na hora de dormir.
---Passados alguns meses, começou um dia a ouvir sua voz, bem ao longe. Rezava e pedia "Meu amor, minha pequena, me leve com você". Ainda não conseguia entender o que lhe respondia a vozinha de dona Leila. Aos poucos, ela foi se tornando mais firme, mais próxima, mas ainda assim seu Armando nada compreendia. Dona Leila apareceu num dia de chuva, no meio da sala de jantar. "Graças a Deus! O Senhor seja louvado! Minha pequena veio me buscar, hosana nas alturas!" Já ia se levantando da poltrona, quando dona Leila o interrompeu com um gesto brusco. "Olha, bem, infelizmente você não pode vir comigo para o reino dos céus". Seu Armando caiu na poltrona, incrédulo. "O que é que você está dizendo, pequena? Você não está aqui pra me buscar? Já não sofri o suficiente? Tudo que eu quero é ficar do seu lado por toda a eternidade." Dona Leila respirou fundo: "Pois é, bem, mas não vai dar." Seu Armando, paralisado, tentava decifrar a feição neutra da esposa, aquele rosto tão agradável... que nada dizia. Depois de alguns segundos, dona Leila tomou fôlego e falou de uma vez: "Você não pode subir comigo ao reino dos céus porque você me traiu, Armando." Pausa. Longa. O pobre homem achou que iria enfartar ali mesmo. Tentou buscar dentro da cabeça uma única brecha em sua conduta, já que havia dedicado toda uma vida àquela criatura que agora o acusava à queima-roupa. "Quando a gente morre, recebe um filme sobre nossas vidas, sabe? Nesse filme vi você, em 1958, de mão dada com a Wandinha da sorveteria dentro do cinema." Seu Armando olhava a mulher, perplexo. "A gente já namorava, Armando." Dona Leila tentou segurar o choro. "Enfim, Deus, Senhor misericordioso, me perguntou se eu te perdoaria por isso, essa sendo a condição para que você viesse a me acompanhar na eternidade." Pausa. "A resposta você já sabe." Choque. 10.000 Volts.
---Seu Armando, 69 anos, bonitão e cheio de vida - e de dinheiro - não acreditava no que ouvia. Ficou quieto, enterrado em sua poltrona, por alguns minutos. A mulher olhava pela janela, também em silêncio. "Quer dizer que você vem lá do além pra me comunicar que não vai me levar." "Isso mesmo." O homem levantou-se devagar, com certa dificuldade, e foi até o telefone. "Espere aí." Ligou para Tânia, uma gostosa que participava das reuniões mediúnicas e dava bem em cima dele. Em cinco minutos o interfone tocava. "Agora pode ir, tenho visita." Dona Leila, incrédula, assistiu ao momento em que a porta se abriu e aquela ruiva escultural entrou sexy e sorrateira como uma tigresa.
---Seu Armando morreu pouco depois; sofreu infarto fulminante durante o coito. Dizem seus companheiros mediúnicos que foi pra um lugar muito quente, cheio de festas, música alta e gatinhas de biquíni. Nunca na vida ele havia estado em um lugar como aquele. Tenho pra mim que ele não achou ruim, não.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Capa dura, páginas coloridas

Em homenagem ao dia do livro, 29/10 - Essas são algumas de minhas facetas, ditadas por um teste intitulado "Que livro (nacional )você é?" Algumas... de muitas.
---
"A paixão segundo GH", de Clarice Lispector
Você é daqueles sujeitos profundos. Não que se acham profundos – profundos mesmo. Devido às maquinações constantes da sua cabecinha, ao longo do tempo você acumulou milhões de questionamentos. Hoje, em segundos, você é capaz de reconsiderar toda a sua existência. A visão de um objeto ou uma fala inocente de alguém às vezes desencadeiam viagens dilacerantes aos cantos mais obscuros de sua alma. Em geral, essa tendência introspectiva não faz de você uma pessoa fácil de se conviver. Aliás, você desperta até medo em algumas pessoas. Outras simplesmente não o conseguem entender. Assim é também "A paixão segundo GH", obra-prima de Clarice Lispector amada-idolatrada por leitores intelectuais e existencialistas, mas, sejamos sinceros, que assusta a maioria. Essa possível repulsa, porém, nunca anulará um milésimo de sua força literária. O mesmo vale para você: agrada a poucos, mas tem uma força única.
--- COMENTÁRIO: Concordo, sem alternativa contrária. Dói estar em constante pé de guerra consigo mesmo, mas algumas coisas são inevitáveis. Para isso existe essa palavra.
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"O vampiro de Curitiba", de Dalton Trevisan
Descolado, objetivo e realista. Nada de meias palavras: a elas, você prefere o silêncio. Você não vê o mundo através de lentes cor-de-rosa, muito pelo contrário. Procura ver o mundo como ele é, entendê-lo, senti-lo. Às vezes, bate até aquele sentimento de exclusão, ou de solidão. Mas é o preço que se paga por ser um pouco "marginal". Não se preocupe, pois você atrai a admiração de pessoas como você: modernas no melhor sentido da palavra. Em "O vampiro de Curitiba" (1965), Nelsinho protagoniza uma variedade de contos, nos quais ele busca satisfazer sua obsessão sexual vagando pelas ruas de Curitiba - paralelamente, esta cidade de contrastes se revela ao leitor. A temática e a forma já denunciam: este não é um livro para qualquer um. Tem que ter cabeça aberta para enfrentar a linguagem nua e crua de Trevisan, que é reverenciado pelo leitor capaz de driblar velhos ranços burgueses.
--- COMENTÁRIO: Pode ser um pouco disso também.
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"O alquimista", de Paulo Coelho
Há alguém no seu bairro, na sua empresa ou mesmo na região que não te conheça? Bem, podem não te conhecer pessoalmente, mas já ouviram falar de você com certeza. Popular e carismático, você está para as pessoas ao seu redor o que os best-sellers estão para os leitores: todo mundo conhece, a maioria gosta e/ou admira, mas alguns torcem o nariz devido ao seu excesso de popularidade, ou, é preciso dizer, de superficialidade mesmo. Afinal, essa personalidade que agrada a todos pode ter um quê de falta de personalidade, não é não? Bem, de toda forma, você não se importa com isso. O que importa é compartilhar a sua experiência de vida – mística ou não – e atrair admiradores."O alquimista" (1988) é, possivelmente, a mais conhecida das obras de Paulo Coelho, o mago das vendas em livrarias brasileiras e internacionais. Fenômeno de popularidade, já vendeu quase 38 milhões de cópias em todo o mundo e foi publicado em cerca de 140 países. E, claro, ocupa a cabeceira de muita gente em busca de autoconhecimento e entretenimento esotérico.
--- COMENTÁRIO: Sim, eu me importo com isso. Não, atrair admiradores não é nem meu objetivo, nem meu forte. Digamos que às vezes acontece.
-- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- --
"Antologia poética", de Carlos Drummond de Andrade
"O primeiro amor passou / O segundo amor passou / O terceiro amor passou / Mas o coração continua". Estes versos tocam você, pois você também observa a vida poeticamente. E não são só os sentimentos que te inspiram. Pequenas experiências do cotidiano – aquela moça que passa correndo com o buquê de flores, o vizinho que cantarola ao buscar o jornal na porta – emocionam você. Seu olhar é doce, mas também perspicaz. "Antologia poética" (1962), de Drummond, um dos nossos grandes poetas, também reúne essas qualidades. Seus poemas são singelos e sagazes ao mesmo tempo, provando que não é preciso ser duro para entender as sutilezas do cotidiano.
--- COMENTÁRIO: Lembra, né?
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"Doidas e santas", de Martha Medeiros
Moderninha e solteira, ou radiante de véu e grinalda? Eis a questão da jovem (ou nem tão jovem) mulher profissional, cosmopolita e, apesar de tudo, muito romântica. Eis a sua questão! Confesse: quantas horas semanais você gasta conversando sobre encontros e desencontros sentimentais com as suas amigas? Aliás, conversando não. Analisando, destrinchando... Mas isso não quer dizer que você só questione a existência de príncipe encantado, não. A vida adulta hoje não está fácil para ninguém, como bem mostram as 100 crônicas de "Doidas e Santas" (2008), que retratam os sabores e dissabores da vida sentimental e prática nas grandes cidades.
--- COMENTÁRIO: Conversas longas, cabeça a mil - só não vale fritar sobre a vida alheia, mal do qual hei de me curar com injeções espaçadas de Benzetacil. Tem que rezar... Falar menos, menos, menos, até o estágio evolutivo de ouvir, observar e dizer o mínimo sábio necessário.
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"Morte e vida severina", de João Cabral de Melo Neto
Às vezes você tem uma séria vontade de estapear as pessoas, só para fazê-las acordarem e perceberem as injustiças deste mundo. Como podem viver em seus mundinhos banais, quando há quem passe fome e totalmente à margem de qualquer conforto ou assistência? Esta talvez seja a sua maior revolta. Por isso, você tenta fazer a sua parte. Talvez por meio de um trabalho voluntário, participando de movimentos populares ou somente se exaltando em rodas de amigos menos engajados. De qualquer maneira, você consegue de fato comover pessoas com seu discurso apaixonado e, ao mesmo tempo, baseado numa lógica de compaixão e igualdade que ninguém pode negar.Essa missão é mais do que cumprida pelo belo "Morte e vida severina" (1966), poema dramático escrito pelo pernambucano Melo Neto que se tornou símbolo para uma geração em conflito com as consequências sociais geradas pelo capitalismo selvagem.
--- COMENTÁRIO: Viva Ernesto Guevara! Viva la revolución!

Se quiserem conferir, acessem:

Capa dura, páginas coloridas

Em homenagem ao dia do livro, 29/10 - Essas são algumas de minhas facetas, ditadas por um teste intitulado "Que livro (nacional )você é?" Algumas... de muitas.
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"A paixão segundo GH", de Clarice Lispector
Você é daqueles sujeitos profundos. Não que se acham profundos – profundos mesmo. Devido às maquinações constantes da sua cabecinha, ao longo do tempo você acumulou milhões de questionamentos. Hoje, em segundos, você é capaz de reconsiderar toda a sua existência. A visão de um objeto ou uma fala inocente de alguém às vezes desencadeiam viagens dilacerantes aos cantos mais obscuros de sua alma. Em geral, essa tendência introspectiva não faz de você uma pessoa fácil de se conviver. Aliás, você desperta até medo em algumas pessoas. Outras simplesmente não o conseguem entender. Assim é também "A paixão segundo GH", obra-prima de Clarice Lispector amada-idolatrada por leitores intelectuais e existencialistas, mas, sejamos sinceros, que assusta a maioria. Essa possível repulsa, porém, nunca anulará um milésimo de sua força literária. O mesmo vale para você: agrada a poucos, mas tem uma força única.
--- COMENTÁRIO: Concordo, sem alternativa contrária. Dói estar em constante pé de guerra consigo mesmo, mas algumas coisas são inevitáveis. Para isso existe essa palavra.
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"O vampiro de Curitiba", de Dalton Trevisan
Descolado, objetivo e realista. Nada de meias palavras: a elas, você prefere o silêncio. Você não vê o mundo através de lentes cor-de-rosa, muito pelo contrário. Procura ver o mundo como ele é, entendê-lo, senti-lo. Às vezes, bate até aquele sentimento de exclusão, ou de solidão. Mas é o preço que se paga por ser um pouco "marginal". Não se preocupe, pois você atrai a admiração de pessoas como você: modernas no melhor sentido da palavra. Em "O vampiro de Curitiba" (1965), Nelsinho protagoniza uma variedade de contos, nos quais ele busca satisfazer sua obsessão sexual vagando pelas ruas de Curitiba - paralelamente, esta cidade de contrastes se revela ao leitor. A temática e a forma já denunciam: este não é um livro para qualquer um. Tem que ter cabeça aberta para enfrentar a linguagem nua e crua de Trevisan, que é reverenciado pelo leitor capaz de driblar velhos ranços burgueses.
--- COMENTÁRIO: Pode ser um pouco disso também.
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"O alquimista", de Paulo Coelho
Há alguém no seu bairro, na sua empresa ou mesmo na região que não te conheça? Bem, podem não te conhecer pessoalmente, mas já ouviram falar de você com certeza. Popular e carismático, você está para as pessoas ao seu redor o que os best-sellers estão para os leitores: todo mundo conhece, a maioria gosta e/ou admira, mas alguns torcem o nariz devido ao seu excesso de popularidade, ou, é preciso dizer, de superficialidade mesmo. Afinal, essa personalidade que agrada a todos pode ter um quê de falta de personalidade, não é não? Bem, de toda forma, você não se importa com isso. O que importa é compartilhar a sua experiência de vida – mística ou não – e atrair admiradores."O alquimista" (1988) é, possivelmente, a mais conhecida das obras de Paulo Coelho, o mago das vendas em livrarias brasileiras e internacionais. Fenômeno de popularidade, já vendeu quase 38 milhões de cópias em todo o mundo e foi publicado em cerca de 140 países. E, claro, ocupa a cabeceira de muita gente em busca de autoconhecimento e entretenimento esotérico.
--- COMENTÁRIO: Sim, eu me importo com isso. Não, atrair admiradores não é nem meu objetivo, nem meu forte. Digamos que às vezes acontece.
-- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- --
"Antologia poética", de Carlos Drummond de Andrade
"O primeiro amor passou / O segundo amor passou / O terceiro amor passou / Mas o coração continua". Estes versos tocam você, pois você também observa a vida poeticamente. E não são só os sentimentos que te inspiram. Pequenas experiências do cotidiano – aquela moça que passa correndo com o buquê de flores, o vizinho que cantarola ao buscar o jornal na porta – emocionam você. Seu olhar é doce, mas também perspicaz. "Antologia poética" (1962), de Drummond, um dos nossos grandes poetas, também reúne essas qualidades. Seus poemas são singelos e sagazes ao mesmo tempo, provando que não é preciso ser duro para entender as sutilezas do cotidiano.
--- COMENTÁRIO: Lembra, né?
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"Doidas e santas", de Martha Medeiros
Moderninha e solteira, ou radiante de véu e grinalda? Eis a questão da jovem (ou nem tão jovem) mulher profissional, cosmopolita e, apesar de tudo, muito romântica. Eis a sua questão! Confesse: quantas horas semanais você gasta conversando sobre encontros e desencontros sentimentais com as suas amigas? Aliás, conversando não. Analisando, destrinchando... Mas isso não quer dizer que você só questione a existência de príncipe encantado, não. A vida adulta hoje não está fácil para ninguém, como bem mostram as 100 crônicas de "Doidas e Santas" (2008), que retratam os sabores e dissabores da vida sentimental e prática nas grandes cidades.
--- COMENTÁRIO: Conversas longas, cabeça a mil - só não vale fritar sobre a vida alheia, mal do qual hei de me curar com injeções espaçadas de Benzetacil. Tem que rezar... Falar menos, menos, menos, até o estágio evolutivo de ouvir, observar e dizer o mínimo sábio necessário.
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"Morte e vida severina", de João Cabral de Melo Neto
Às vezes você tem uma séria vontade de estapear as pessoas, só para fazê-las acordarem e perceberem as injustiças deste mundo. Como podem viver em seus mundinhos banais, quando há quem passe fome e totalmente à margem de qualquer conforto ou assistência? Esta talvez seja a sua maior revolta. Por isso, você tenta fazer a sua parte. Talvez por meio de um trabalho voluntário, participando de movimentos populares ou somente se exaltando em rodas de amigos menos engajados. De qualquer maneira, você consegue de fato comover pessoas com seu discurso apaixonado e, ao mesmo tempo, baseado numa lógica de compaixão e igualdade que ninguém pode negar.Essa missão é mais do que cumprida pelo belo "Morte e vida severina" (1966), poema dramático escrito pelo pernambucano Melo Neto que se tornou símbolo para uma geração em conflito com as consequências sociais geradas pelo capitalismo selvagem.
--- COMENTÁRIO: Viva Ernesto Guevara! Viva la revolución!

Se quiserem conferir, acessem: