A vida nos explica muitas coisas de várias maneiras. De algum jeito que eu não conseguiria jamais precisar, entendi que sou musical. Poderia ter me dedicado mais, poderia ter me tornado melhor em algum sopro dessa saga - e poderia ter feito milhares de outras coisas que me fariam rir ou chorar, ganhar dinheiro ou mais sorrisos sinceros, pisadas mais firmes... Pra abrandar meu desalento e eufemizar meu TOC cada vez que uma nota destoa, criei uma estratégia: digo pra mim mesma "Esse não é meu meio de vida". E passa. Na minha primeira vez batucando no carnaval, um sujeito estacionou do meu lado e disse que vinha me reparando, analisando meu jeito de tocar. Concluiu que me faltava energia. Muitas ondas se passaram, a oferenda já se perdeu no mar. Aquelas sete ondas que a gente pula são na verdade dezoito, vinte e duas, milhares, cada uma levando pra longe as pessoas, as histórias que pensamos morar em nós até nosso HD nos trair. A seletividade da memória, a transitoriedade dos momentos, a experimentação de sentimentos como a dor, a paixão, o júbilo, a desesperança, nada disso parece calculado - mas o que fica carrega o propósito de nos ver crescer. A confiança se emoldura por escolhas que te priorizem, que te incluam. Por isso, com alegria ou sem energia, ainda me visto com capricho, pego meu tarol e vou em busca de um batuque que me aqueça, que me represente; pego meu caderno, meu ukulele e vou arranhando notas sôfregas, infinitas como as estrelas, sinceras como tudo que se sente. Hoje, em meio a esmaltes e acetona, Lourdinha me perguntou onde os extraterrestres moravam. Uai, Lourdinha, em outros planetas! Que planetas?, ela retrucou. Tem mais planeta? Tem muita coisa se você quiser saber... Minha sobrinha Cecília e a amiga Helena organizaram outro dia toda uma caça aos ursos no parquinho do prédio - foram a pé pro Polo Norte. Conhecer faz a gente imaginar, e imaginar faz a gente querer descobrir o mundo e tudo que faz ele ser o menos óbvio possível. Somos passíveis de erros, de falhas, cometemos gafes, falamos bobagem e é isso aí. Passa - o medo, o desconforto, a dúvida, a ansiedade, tudo passa se você acredita que o mar leva, que o mar traz, que a onda certa se chama AGORA, que não tem reza nem mantra pra pular o que tiver que aparecer. Olho em vonta e sinto-me obrigada a ser grata pelas flores que encobrem os espinhos da minha alma. Resolvi nadar sem boia e sem salva-vidas... e descobri a graça de saber boiar - em mar sereno, em mar bravio; em lagoa calma, em rio, em piscina de sonhos verdes e luzes escondidas.
Esse blog é destinado a compartilhar viagens literárias, e está aberto a seres humanos e afins... Divirtam-se!
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Princess Toadstool
Era um sábado qualquer. Havia recebido um convite para correr com uma amiga bem cedo, mas acordei depois do horário e decidi que iria - pela primeira vez - dar a volta na lagoa da Pampulha correndo. Meu máximo havia sido 14 quilômetros em condições de tempo e espaço muito favoráveis. Parada há mais de dois meses devido a uma lesão no joelho e recém-saída da fisioterapia, não saberia dizer a vocês o que me levou a resolver tão firmemente dentro de mim que aquele seria o dia em que eu faria aquilo, e que daria o meu sangue independente das condições porque sou capricorniana - e porque sou eu. Falei pro meu namorado e ele simplesmente respondeu: Bora - vou com você de bicicleta. Ontem, assistindo a Nyad, filme profundo e sensível, esse dia brilhou na minha memória. A história envolve (sem spoiler) três premissas básicas: 1. nunca desista; 2. nunca é tarde para realizar seus sonhos; 3. it takes a team.
Chegamos às 13:30, e ele alugou a
maior bicicleta disponível – o que, pra um cara de dois metros e dez, não
passava de uma Caloi Ceci. Sol, calor, zero preparo – esse era o cenário. Quem
corre sabe que a gente tem uns momentos de transe - sem eles acho que não daria
pra percorrer tamanhas distâncias só com a força das pernas e a persistência
dos pés. Quem manda, de fato, é a cabeça. Passava momentos meditativos
duradouros e, a cada despertar, olhava pro lado e lá estava ele, com uma
mochila nas costas cheia de coisas minhas, suando como uma chaleira e com cara
de tudo certo. Lembro de pensar “é isso mesmo? É normal? Eu mereço?” enquanto
sentimentos diversos iam tomando forma aqui dentro.
Com treze quilômetros, fui tomada
pelo cansaço. Fiquei sem ar, o calor me afetava, as pernas doíam... meu corpo
inteiro queria desistir. Pensamentos como "parabéns, você chegou até
aqui", "está calor, não é culpa sua", "você fez o seu
melhor", "ninguém está te cobrando isso", "você nem se
preparou mesmo" foram inundando minha cabeça. Parei sem fôlego e saiu da
minha boca: "não aguento mais". Aquele cara gigante, ensopado e
dolorido por pedalar uma bicicletinha por mais de uma hora no sol com uma
mochila nas costas cheia de coisas minhas, me pediu pra respirar e me disse:
"você consegue. Se precisar, paramos a cada quilômetro até chegarmos lá.
Falta muito pouco, força!" e eu olhei pra frente e voltei a correr. Não
parei mais até o final dos 18 quilômetros. Até hoje rimos ao lembrar que não
conseguimos nem tirar uma foto, de tão flabbergasted que eu estava (essa
é a palavra, a sensação não cabe no português).
Nyad me tocou duplamente por trazer dois temas importantes - o poder da parceria e o impacto do abuso. Engraçado como de poucos dias pra cá vi três filmes retratando abuso sexual - e em dois deles, diferente do "padrão" (ou fato inegável), foram apresentadas situações de estupro que ainda confundem muitas mulheres: momentos em que, por qualquer motivo, elas disseram não e a outra parte da dupla decidiu que sim. Muitas de nós ainda não entenderam que foram abusadas - e pelo visto muitos homens também. Muito duro, e infelizmente comum, é o abuso por parte de maridos, namorados, parceiros, pessoas próximas, com quem você divide a cama, a casa, os fatos corriqueiros de todo dia - pessoas que, em suas cabeças doentes, ligam a intimidade que conquistaram ao direito de satisfazerem seus instintos quando e como lhes convier. Digo por mim que isso dói mais que ferida aberta, porque a gente se sente suja e traída e impotente e não digna de um amor de verdade, de um sonho que vale a pena ser realizado, de uma vida plena, com cachorro, planta e muita história linda. A gente faz terapia, reza, corre atrás da mais-valia, do autoamor, e ao primeiro não já sente um gosto doce na boca, de que lutar por você está, devagar e sempre, fazendo a diferença. It takes a team pra acabar com o Bowser e libertar a princesa, mas volta e meia o medo volta – ela ainda se lembra.
Entender que uma pessoa vai
acordar num sábado quente, pegar uma mochila, atravessar a cidade e passar duas
horas no sol em cima de uma bicicleta com cara de velocípede só pra te
acompanhar, pra te cuidar e te ajudar a se superar, pra ser bem sincera, ainda
é intrigante - cheira a banco de carro zero, aquela alegria quase entorpecente.
Que o que fomos e o que um dia vivemos nos traga um senso de gratidão, porque
cada linha torta desse livro direcionou o curso do seu rio, alongou suas pernas
e braços, fortaleceu sua mente pra que você pudesse, mais uma vez, nadar - para
o melhor lado do rio - porque você pode - porque você merece - porque um filme
no Neflix pode abrir as portas e janelas da sua alma para o que existir de mais
bonito e mais verdadeiro. Deixa o sol entrar... Voa!
segunda-feira, 31 de julho de 2023
...pediu um café à João Gilberto
Era perto das três da tarde e eu equilibrava papéis e livros a passos largos, em direção ao meu carro; na contramão, duas moças nos seus vinte e poucos anos puxavam inconscientemente a mochila junto às costas enquanto travavam uma conversação interessante pelo caminho estreito que àquela hora dividíamos. Meu pensar piscava aturdido por confusões de todo tipo, mas nenhuma delas impediu que minha antena captasse, naquele pequeno momento em que nos apertamos para caber naquele caminho, uma onda de palavras que se quebrou sobre os meus ouvidos: ... a gente sentou e ele pediu um café à João Gilberto... Assim. Uma onda. Quebrando pelo meu casco endurecido de vivicionices capricornianescas, planilhas em word riscadas a lápis. Criei uma imagem de um casal que sai junto pela primeira vez e me vieram as emoções do primeiro encontro, as inseguranças, os traumas e as expectativas, o que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta - e o que tudo isso que se seleciona ilustra o medo que temos de nós. Nesse meu devaneio mais sistêmico que sistemático vi o moço chamando a garçonete timidamente com um breve aceno, seus movimentos leves e coordenados, seu olhar tranquilo a maquiar uma breve ansiedade, a esconder uma rabugice teimosa quando lhe passava pela cabeça a possibilidade de tocar distraído uma nota errada... de desafinar. À medida em que a atendente se aproximava, ele ensaiava mentalmente os passos e compassos, os sis e os fás, um dó desenganado. Pelo bloquinho de anotações foram-se desenhando os detalhes do pedido em notas suaves, tom melancólico e incerto de quem não sabe ainda em que momento daquela história uma daquelas mãos sobre a mesa abraçaria a outra - em que momento ele por fim entenderia que a perfeição encobre a essência, e é essa mesma essência, com seus encantos e desatinos, que sintoniza cada par de corações desafinados, roucos, uivantes, estelares. A vida é cheia de personagens marcantes, e de tanto viver e querer achar um sentido, uma tribo, um ouvido, seguimos o caminho dos outros, ouvimos essa e aquela conversa, represamos a onda que passa numa piscina cheia de água que não é nossa, que ensina, que purifica mas que não nos pertence nem define - que não nos simplifica nem adoça. Engessamos nossa existência enquanto assistimos por uma janela embaçada os desafinos alheios que a gente endossa, fracassos que nosso olhar hipermétrope transforma em receitas de sucesso instantâneas, espinhos que a gente quer porque quer que sejam rosas. Às vezes me lembro daquelas meninas cruzando meu caminho estreito, daquelas palavras soltas que ecoaram pela minha alma e despertaram as reflexões que hoje compartilho, e penso que possivelmente o que se passou nada tem a ver com aquela cena criada pela minha imaginação; que em algum canto desse mundo pode existir um café à João Gilberto, cujo sabor é tímido e perfeccionista como ele próprio. Mas quer saber? O que se inventa, o que se admite logo de cara, o que se omite, o que se aumenta - tudo isso que se seleciona só ilustra o medo que temos de nós. Hoje pedi um café à João Gilberto e cada gole quente, amargo e perfumado acordou em mim a lembrança de que somos todos desafinados com corações batendo no fundo do peito, pulsando um querer feroz.
quinta-feira, 13 de abril de 2023
Columbine
Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas. Na minha vida o principal meio de emancipação de mim mesma, dos meus antepassados que fracassaram no amor e em outras drogas, foi o conhecimento - consciência de que os erros fortalecem, que saber ler as entrelinhas é a chave pra compreender o todo, que a humildade é a mãe da sabedoria, da prosperidade, da mais-valia, de tudo que importa, que a esperança derrete a pedra que cristalizou o sofrer do coração da gente. Conhecimento de causa, de matéria, de energia, de caminho, de verdade, de propósito, de argumento, de sentimento, de anseio e de glória - conhecimento do que vem a ser a fé, o meu problema, o problema do outro, o que está sob meu controle e o que foge dele e não pode, por isso, me descabelar. Li há pouco tempo dois livros de uma autora que ganhou o Nobel de literatura em 2022 pelo conjunto da obra - infeliz coincidência, já que o primeiro foi tão desagradável que passei dias arrotando aquelas linhas indigestas. O segundo foi melhorzinho, mas, como minha leitura dos franceses, blazé: sem emoção. Fiquei atordoada com o fato de uma pessoa que discorre sobre um aborto na juventude com frieza ártica disfarçada de naturalidade/autonomia/independência/maturidade (pelo amor de Deus chega) não só concorrer mas ganhar o maior prêmio mundial atribuído a um escritor. E não estou falando aqui de culpa cristã nem da minha opinião sobre o ato em si; estou problematizando uma tentativa - a meu ver muitíssimo frustrada - de naturalizar uma situação banalizando-a, trivializando o que não tem absolutamente uma vírgula de trivial. Em minhas palestras espíritas, falava sempre do orgulho e da vaidade como os maiores vilões da humanidade, e ao ser desmentida e acusada téte-a-téte em nome de Jesus, fico pensando que não reagir negativamente, não querer que a pessoa pague, se ferre, se estrepe é tarefa pra santo, e santo nenhum está preparado pra habitar esta terra. Viver é foda, morrer dá medo e ser atacado no meio do caminho é tudo que eu rezo pra não me acontecer desde que fui de fato atacada a mão armada dentro de um ônibus de viagem (voltando de um enterro), dentro de um restaurante e, menos de vinte e quatro horas depois, dentro de um shopping. Éééééééé... o inferno é aqui. Hoje meus alunos apareceram ressabiados, com medo de um grupo de Tik-Tokers ameaçando promover ataques em escolas, pagando de avengers de Columbine - falácia + ócio + falta de empatia + bebida + droga + sexo barato e zero pista de onde vêm o pânico, a ansiedade, a depressão, o surto a cada nota baixa, cada plano frustrado, cada advertência, cada não. Conhecimento é controle; vitimização é conforto. O que me cabe é acompanhar de longe essa fila de patos sem mãe engrossando a homogeneidade ideológica, o maria-vai-com-as-outrismo, o coitadismo, a histeria coletiva. Se eu não trabalhasse, não tinha dinheiro pra estudar; pra comer; pra fumar meu cigarro, tomar minha cerveja, me embriagar de experiências que me afrontam, me confrontam e me impulsionam pra fora da bolha de mediocridade que quis, lá atrás, me abocanhar. O que as pessoas hoje fazem pelo determinismo, comunismo, egocentrismo, vitimismo, conformismo, até pelo (pseudo)altruísmo é nocivo demais - e demais é muito mais, é excesso, é sufocante... insuportável. Talvez por isso uma autora que narra tão casualmente o processo de transar sem proteção-descobrir uma coisa dentro do corpo-procurar meios para se livrar dessa coisa e ganha o Nobel de literatura seja a ilustração perfeita do que melhor representa o sucesso em nossos dias, porque profundidade dói e machuca na mesma proporção - profundidade é que nem bolsa de grife: custa caro e ninguém quer pagar, mas é fácil imitar, fácil blefar que tem. Talvez o melhor mesmo seja não acreditar em nada, seguir correndo com sapatos desamarrados pela chuva fina, cabelo grudando no rosto, roupa pesando o corpo, água salgando os olhos que pouco enxergam porque decidiram que, afinal, enxergar é só uma questão de perspectiva; que, no final, um pouco de positividade tóxica é a lente rosa que faltava pra fingir que o que a gente sente ou pensa na verdade pouco importa. Tenho achado difícil demais viver nesse mundo. Sinto como se eu estivesse encostando o joelho no asfalto a cada passo, num dia insuportavelmente quente, e tivesse que me erguer do chão com a força do meu corpo. A cada passo. Num dia insuportavelmente quente. De pelo menos trinta horas.
segunda-feira, 20 de março de 2023
Sonharte
Sonhos são muito mais que devaneios. São goles de expectativa por uma vida no mínimo menos ordinária, cercada pelo amor de nossos pais, de nossos cães. Já cheguei a pensar que sonhos nada mais são do que uma projeção de nossa amargura. Hoje quero crer que eles nos fazem inclusive acessar nossa parte adormecida, aquela que quer uma vida de outra vida, outra natureza, outra interseção que não seja divina - ao menos para que Deus tenha certo apreço por nós.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Cama de anjo
Bem-aventurada seja minha primeira postagem do ano :)
E hoje quero falar sobre uma cama de solteiro que nunca foi usada, no spare room da casa de alguém que a adquiriu por mera questão de protocolo. Esses dias comprei uma barraca pra um inquilino 0800 que construiu um puxado de papelão sob a marquise do meu prédio. Quanto mais chovia, mais eu pensava se minha condição privilegiada, ao cruzar quase diariamente com aquele carimbo de miséria na porta da minha casa, não estava gritando na minha cara que eu deveria fazer alguma coisa. Gritou, acudi: comprei uma barraca e pedi ao meu zelador que entregasse a ele de forma anônima. Se ele trocou por pedra, papel e tesoura, se usou de coberta, se jogou fora por ocupar espaço, se entregou como parte de uma dívida... não importa. Mesmo. Ainda que tenham tentado me convencer de que ele de fato não usaria a barraca para se abrigar, entendi que fiz a minha parte. Assim foi com as sacolas de roupas que deixei perto de um casal que dormia sob outra marquise próxima, com as roupas do meu pai que doei para moradores de rua. Entendi que eles podiam fazer o que bem entendessem, porque algum dia essas coisas iriam chegar às mãos de quem realmente precisava delas. Imagino que agora você deva estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com a cama de solteiro que nunca foi usada, no spare room da casa de alguém que a adquiriu por mera questão de protocolo? Tudo, meus queridos. Tudo. Vou dar um tempo pra vocês fazerem o link. Enquanto isso saboreio um Ben and Jerry's de doce de leite e chocolate maravilhoso que meu namorado pediu junto com o antiinflamatório pra me mimar durante uma das minhas constantes e intermináveis crises de coluna. Estamos quase lá - e o último relato também faz parte do pacote.
A cama era do meu pai. Comprou um apartamento de 2 quartos e mobiliou o segundo com uma cama de solteiro e uma cômoda. Praticamente um quarto de verdade, com guarda-roupas e um tamanho interessante. O mais interessante, contudo, é imaginar o por quê desse quarto montado pra ninguém dormir. Fui à casa do meu pai uma vez, com minhas irmãs. Praticamente invadimos a casa, nos convidamos e fomos sem ligar pra resposta. Foi a primeira vez em que me lembro de ter contato com a intimidade do meu pai. Ali ele era um ser indefeso, inofensivo, vulnerável, com a fragilidade aos berros, ecoando pelo vão onde ficaria o fogão, reverberando em cada móvel barato, em cada prato sujo em cima da pia, na camisa amassada com que ele abriu a porta, na poeira com cheiro de tristeza, de sozinheza, solidão sem prazer e sem drama. Mais adiante, fui adentrar a intimidade dele quando adoeceu - e não voltou pra casa. Ainda mais invasivo foi pegar as suas chaves e ir até lá mexer nas suas coisas, na vida que eu desconhecia. Curiosidade com angústia, tristeza com mágoa, era isso que eu sentia? Olhei praquela cama com o colchão ainda no plástico, pra cômoda que bem podia ter sido um criado mudo. Nunca cumpriram o papel de abrigar uma filha, um irmão, um amigo... Nunca receberam visita. Sem cheiro e sem história, aquela cama me olhava e de tanto olhar, um ano depois, visitou-me em sonho pra me mostrar o link com as coisas doadas e os casos doídos que por tanto tempo saíram da minha boca. Pregamos o dever de sermos bons com o próximo, e ignoramos a máxima que nos impede de engrandecer o processo - desde que o próximo não seja tão próximo. Damos pão e circo, colo e ombro pras visitas, a toalha mais alva sobre a mesa, enquanto pros de casa é custoso estender a mão. Não engoli aquela cama vazia - reflexo do espaço que estava lá pra eu ocupar e ele não quis. Essa cama vazia, contudo, me convidou um ano depois a abrir a porta daquele quarto coberto de pó de esquecimento e me disse que não foi por querer, que ninguém fez por merecer e que a chuva vai molhar a terra e unir em amor nossas almas sós - se não há perdão dentro, não há solo fértil fora de nós. Quero crer que toda noite, um anjo chegava manso pra conversar, aliviar a sozinhez tristonha de mais um dia à toa... discutia o jornal, se demorava até depois da novela, e quando via meu pai pescando no sofá, chamava Hélio, vamos dormir - e meu pai dizia Tá certo, mas fica aí, já está tarde, amanhã você vai, e ele fazia que sim com a cabeça e olhava pra cama vazia... e descansava sua auréola sobre a cômoda e acomodava suas asas de luz invisível no plástico barulhento do colchão. Até o dia seguinte; até a casa perder a voz.