Bem-aventurada seja minha primeira postagem do ano :)
E hoje quero falar sobre uma cama de solteiro que nunca foi usada, no spare room da casa de alguém que a adquiriu por mera questão de protocolo. Esses dias comprei uma barraca pra um inquilino 0800 que construiu um puxado de papelão sob a marquise do meu prédio. Quanto mais chovia, mais eu pensava se minha condição privilegiada, ao cruzar quase diariamente com aquele carimbo de miséria na porta da minha casa, não estava gritando na minha cara que eu deveria fazer alguma coisa. Gritou, acudi: comprei uma barraca e pedi ao meu zelador que entregasse a ele de forma anônima. Se ele trocou por pedra, papel e tesoura, se usou de coberta, se jogou fora por ocupar espaço, se entregou como parte de uma dívida... não importa. Mesmo. Ainda que tenham tentado me convencer de que ele de fato não usaria a barraca para se abrigar, entendi que fiz a minha parte. Assim foi com as sacolas de roupas que deixei perto de um casal que dormia sob outra marquise próxima, com as roupas do meu pai que doei para moradores de rua. Entendi que eles podiam fazer o que bem entendessem, porque algum dia essas coisas iriam chegar às mãos de quem realmente precisava delas. Imagino que agora você deva estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com a cama de solteiro que nunca foi usada, no spare room da casa de alguém que a adquiriu por mera questão de protocolo? Tudo, meus queridos. Tudo. Vou dar um tempo pra vocês fazerem o link. Enquanto isso saboreio um Ben and Jerry's de doce de leite e chocolate maravilhoso que meu namorado pediu junto com o antiinflamatório pra me mimar durante uma das minhas constantes e intermináveis crises de coluna. Estamos quase lá - e o último relato também faz parte do pacote.
A cama era do meu pai. Comprou um apartamento de 2 quartos e mobiliou o segundo com uma cama de solteiro e uma cômoda. Praticamente um quarto de verdade, com guarda-roupas e um tamanho interessante. O mais interessante, contudo, é imaginar o por quê desse quarto montado pra ninguém dormir. Fui à casa do meu pai uma vez, com minhas irmãs. Praticamente invadimos a casa, nos convidamos e fomos sem ligar pra resposta. Foi a primeira vez em que me lembro de ter contato com a intimidade do meu pai. Ali ele era um ser indefeso, inofensivo, vulnerável, com a fragilidade aos berros, ecoando pelo vão onde ficaria o fogão, reverberando em cada móvel barato, em cada prato sujo em cima da pia, na camisa amassada com que ele abriu a porta, na poeira com cheiro de tristeza, de sozinheza, solidão sem prazer e sem drama. Mais adiante, fui adentrar a intimidade dele quando adoeceu - e não voltou pra casa. Ainda mais invasivo foi pegar as suas chaves e ir até lá mexer nas suas coisas, na vida que eu desconhecia. Curiosidade com angústia, tristeza com mágoa, era isso que eu sentia? Olhei praquela cama com o colchão ainda no plástico, pra cômoda que bem podia ter sido um criado mudo. Nunca cumpriram o papel de abrigar uma filha, um irmão, um amigo... Nunca receberam visita. Sem cheiro e sem história, aquela cama me olhava e de tanto olhar, um ano depois, visitou-me em sonho pra me mostrar o link com as coisas doadas e os casos doídos que por tanto tempo saíram da minha boca. Pregamos o dever de sermos bons com o próximo, e ignoramos a máxima que nos impede de engrandecer o processo - desde que o próximo não seja tão próximo. Damos pão e circo, colo e ombro pras visitas, a toalha mais alva sobre a mesa, enquanto pros de casa é custoso estender a mão. Não engoli aquela cama vazia - reflexo do espaço que estava lá pra eu ocupar e ele não quis. Essa cama vazia, contudo, me convidou um ano depois a abrir a porta daquele quarto coberto de pó de esquecimento e me disse que não foi por querer, que ninguém fez por merecer e que a chuva vai molhar a terra e unir em amor nossas almas sós - se não há perdão dentro, não há solo fértil fora de nós. Quero crer que toda noite, um anjo chegava manso pra conversar, aliviar a sozinhez tristonha de mais um dia à toa... discutia o jornal, se demorava até depois da novela, e quando via meu pai pescando no sofá, chamava Hélio, vamos dormir - e meu pai dizia Tá certo, mas fica aí, já está tarde, amanhã você vai, e ele fazia que sim com a cabeça e olhava pra cama vazia... e descansava sua auréola sobre a cômoda e acomodava suas asas de luz invisível no plástico barulhento do colchão. Até o dia seguinte; até a casa perder a voz.
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