domingo, 1 de setembro de 2019

Desistir: verbo intransitivo

Não sei se é impressão minha, mas me parece que hoje em dia as pessoas têm se colocado em situações estranhas para justificar sua insistência no que não deu e não vai dar certo. E lá vão elas, insistindo em continuar bebendo quando já viram que passaram da conta; em procurar diversão onde há muito não encontram; em se convencerem de que o que já acabou vai, de alguma forma, continuar. Mudamos constantemente, e assim deve acontecer com nossas escolhas e preferências. Imaginem se até hoje eu estivesse insistindo em dançar ballet! Estaria no mínimo frustrada com o fato de que eu não nasci pra isso, definitivamente. Ah, mas tudo dá certo se você insiste, se rola uma dedicação... NÃO. Ser humano é saber desistir quando já não dá pé, quando não faz bem, quando a gente percebe que a realidade é só uma. Nessa hora, tenha a dignidade de pular do barco, leve, decidida, sem neuras e com novas perspectivas. Ninguém é tão péssimo que não possa recomeçar a vida em um outro lugar, com hábitos mais saudáveis e um sorriso no rosto. Muitas vezes, o que importa não é de que se desiste - o que importa é desistir, é deixar pra lá, é renovar os pensamentos e as atitudes. Desistir é ganhar o direito a uma vida nova, cuja felicidade só depende mesmo de você.   

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Passe

Para quem não sabe, aplicar passes é muito mais simples do que se imagina. Basta fazer um curso (no centro em que frequento esse curso durou um final de semana somente) e ter boa vontade e disponibilidade para integrar uma das equipes da casa. Pede-se que o passista se prepare no dia do passe e no anterior, evitando a ingestão de bebida alcoólica e também carne vermelha. No dia do passe, é importante que o passista esteja bem disposto e tranquilo, a fim de se doar à tarefa. É uma tarefa bonita, nobre, porque servimos de canal para que a energia divina chegue até as pessoas que adentram a sala em busca de luz. Como integro a equipe que aplica passes nas reuniões de tratamento, tenho a oportunidade de ver muitas figurinhas carimbadas, pessoas que vão semanalmente ao centro, que sentam-se sob uma luz azul e, completamente desarmadas, fecham os olhos e confiam na energia que recebem, emanada de mãos dedicadas e prontas a servir. Seria maravilhoso se esses trabalhadores estivessem sempre tranquilos e preparados. A questão é que somos humanos, e, como tal, passíveis de dias ruins, de fases complicadas, noites mal dormidas, dilemas e questões de todo tipo. Reconhecemos a importância da preparação, da meditação, da sublimação do que anda estranho ou errado, mas a angústia paralisa, o medo afoba. Tem dias em que é o passista quem precisa de um passe longo, poderoso, cheio de luz que não se apaga, calor que não se dissipa - passe que não passa. Compreendemos que nossa existência, única em nome e endereço, não passa de uma passagem; crucial, contudo, é passearmos por ela com mais paciência, repassarmos as páginas borradas a limpo, passarinharmos por nossa bela essência. Nessa luta por mais ciência e mais aprendizado, a humildade pede coração apurado, e a gratidão só é sincera quando atribuímos valor ao nosso passe. Os dissabores passam, como passam também dias de sol. Que possamos sorver com sabedoria cada sopro de vida destinado a passar por nós.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Morava

Não fomos morar juntos - eu fui morar com você. Na sua casa. Com as suas coisas. As suas regras. Seu tempo e espaço. Cheguei com uma meia dúzia de malas, muitos livros e alguns velhos cadernos que uso pra rascunhar passos certos e errados. Minha vida sacudia dentro de uma camioneta, como se em quase meio século de existência eu só tivesse aquilo ali - roupas, livros, cacarecos de estimação, um lugar pra estudar, um pra ler, uns pra guardar as coisas. Enfeite não podia - não me cabia naquela vida que há tanto você montara. Uma geladeira nova, microondas, televisão vieram pedindo licença. Pra me caber na sua vida te assisti, bem sem querer, abrir mão de uma TV, um móvel antigo e duas cadeiras que não combinavam com você. Valia a pena o sacrifício só pra ter alguém dividindo as contas, regando as plantas e arrumando a casa compulsivamente? Ah, é. Tem o amor. Por amor, vontade de dar certo, foi-se embora a TV do quarto, maior arrependimento. Do lado de cá, se foi uma casa pronta, vida sossegada com vista pro mato, carro quitado, sonho de ser mãe, dinheiros e dinheiros, gratidão por estar viva, saudável e com a faca e o queijo na mão pra mudar tudo isso. Fui caminhando e tirando dos bolsos porções gordas de amor próprio pra ficar amor somente, aquele sofrido que vem com resiliência, humildade, paciência e dor do dedinho do pé até o fio mais arrepiado do cabelo. Tenho certeza que a vida é muito maior do que isso que eu sinto agora, essa síndrome do passarinho sem ninho que me arrebata a cada cinco minutos, mas preciso dizer que a coisa mais difícil é perceber-se ganhando quando ao seu redor tudo insiste em te convencer que você está de fato perdendo. Estranhamente estranho, contudo, é sentir dentro de mim uma força enorme, explosiva, que nem aqueles clipes do Chemical Brothers em que a batida invade o corpo e a alma das pessoas, toma o controle. Difícil explicar, mas é como se muita gente estivesse ao meu redor e decidissem todos me carregar, que agora eu estou cansada mas até que sou gente boa, então bora quebrar o galho dessa moça, bora levar ela pra rua, bora pedir pra melhor amiga ligar e chamar pra uma volta de bicicleta, bora criar desculpas pra ela sair de Belo Horizonte, sair do país, sair de casa num dia frio pra tomar açaí na Almeida, bora carregá-la pra atravessarmos com ela no colo essa areia movediça, bora dar tanto amor pra essa menina que ela vai perder o medo e a vergonha de amar daquele jeito de amor somente, aquele sofrido que vem com resiliência, humildade, paciência e dor do dedinho do pé até o fio mais arrepiado do cabelo - e emoção também, uma emoção tão grande que eu fico até sem graça de sentir. Uma batida que nem a do Chemical Brothers, que tira a gente pra dançar. Puta merda, Jesus, véi! Filho de Deus, vá lá... Mas esse seu escrever certo por linhas tortas, essa matemática louca pra me explicar que o morava me preparou para morar em minha própria pele, dentro e fora de mim... Nu! Você é foda. Valeu, mano. Tamo junto.

domingo, 30 de junho de 2019

Mãe

Mãe sofre. Mãe acredita nos seus filhos até o fim. Mãe desacredita também. Grita. Xinga. Mete a mão. Chama a polícia. Interna. É, mãe é gente como a gente, a fim demais de ter uma vida boa. Cada surto é um sopro de esperança; cada chacoalhada renova as ideias, borbulha o sangue que vai pro coração. Dizem que mãe tem que aguentar. Mãe tem é que se orgulhar, uai! Pôr pra fora uma massa enorme, desconfortável e, agora, dependente. Não deve ser fácil. Que ele coma primeiro, que durma primeiro, que seja feliz primeiro. De repente a mãe não tem vontade própria - e é condenada se tiver. De repente o filho é o centro do mundo e pronto. E mesmo com todo o ceder, não dá pra saber quando acaba o sorriso, o abraço, a chuva de cartinhas com desenhos coloridos... por que em uma mesma noite a rainha vira abóbora, saco de batatas? Relegada a segundo plano, ela resiste. É ela quem permite? Seria rechaçada se não permitisse? Do outro lado da sala, o pai - impassível, incólume... protegido pelo peso da tradicional inércia. Mãe é ser humano, gente que quer ser gente, viver com dignidade. Mãe quer criar os filhos e seguir a vida e esperar por dias bons, alguns milagres e poucas aventuras. Mães ficam amargas. Choram. Pensam em como seriam suas vidas se não tivessem sido mães. Ninguém pra cuidar além de si mesmas. Talvez por isso mesmo elas tenham sido mães - pra ressignificar as noções de tempo, espaço, necessidade, prioridade, sonho, centro de tudo. Será que eu não pude ser pra centrar tudo em mim? Mas não fica bem egoísta? O pior é não poder gerar um filho biologicamente e ceder sua liberdade de tomar um picolé no fim da tarde a uma pessoa qualquer, sem laços consanguíneos, sem direito adquirido, sem bandeira da paz a tiracolo, sem amizade no rosto, sem mãos sobre pedras. A cada terremoto uma erosão, uma fissura no terreno mal-embasado, um banho mais demorado que o usual, um chá pra você e sua cabeça, um pentear de cabelos com a mais pura introspecção. Mãe acredita e sofre, quer e reza, troca o certo pelo incerto, faz o impossível para cuidar, criar, esquecer de si só para lembrar do outro - mãe paga e padece e evolui e se enobrece. Que Deus livre do mal as que não tiveram o mesmo privilégio.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Invernal

Hoje é o primeiro dia do inverno. Aniversário do meu amigo André Santana, que há alguns anos sumiu sem deixar rastro. Lembro-me exatamente do dia em que ele me disse Cheguei junto com o inverno. Partiu em pleno verão, devaneio praiano. A cada 21 de junho me lembro do André, do Stereographic, do trance darkzera que ele fazia. Era forte. Sabia que era elaborado, que era profundo, mas desorganizava as minhas ideias. Ele ficou famoso e mais tarde aquele som desorganizou as dele também. A balada. A droga. A bebida. A bebida. A bebida. A droga...! Tem gente com discurso pronto pra explicar que tem controle sobre isso. Deixa eu explicar uma coisa: ninguém tem controle sobre o vazio. The void. Não se trata de controlar o uso de uma substância que suga a sua energia hoje pra te derrubar amanhã - um verdadeiro knockout. Trata-se de controlar sua ânsia por um pouco de adrenalina, de invencibilidade, de descontrole... por uma vida menos ordinária. E assim vem o sexo desprotegido, a vulnerabilidade do não saber, o frio na barriga quando você acorda e nem imagina o que aconteceu depois das seis horas de ontem. A gente bebe pra esquecer e se lembra mais, se lembra enquanto o corpo derrete embaixo do chuveiro. De medo. De pena. Regrets. Ah, foda-se - amanhã vai ser outro dia e logo adiante lá estará você repetindo o ciclo. Tranquilo seria se você fosse um ser à parte, sozinho no mundo, sem amarras. Mas tem a sua mãe. O seu pai. A sua irmã. A sua esposa. Seus filhos? Olá, alguém aí acordado pensando nisso? Quando o André se foi eu pensei. Eram tantas mensagens no facebook, tantas pistas falsas, tantos "ele foi visto aqui e ali"... E do outro lado da tela a mãe e o irmão seguiam cada fio daquela meada ensandecida. Um dia ele era um cara dos mais bonitos, ciclista, saudável. No outro a paranóia virava de quando em vez o seu pescoço. Qualquer barulho era sinal de alerta. As pessoas estavam sempre armando alguma coisa. O mundo tornou-se um lugar opressivo demais. Sufocante. Na hora do sufoco bom mesmo é chorar aquelas lágrimas que doem pra sair; gritar bem alto num lugar distante; caminhar com uma porrada no ouvido pra virar feto com um mantra de relaxamento uma hora depois; falar palavrão por escrito; tomar sol, tomar chuva, tomar arco-íris na cara. Abraçar a sua sogra antes e depois do chá, do bolo com pão de queijo e daquela conversa, se perder naquele abraço que revigora, naquele laço que se criou no princípio de tudo. Abri a porta do elevador e senti aquele frio invernal balançar as folhas da minha saudade já latente, e quis voltar e dizer obrigada por tudo. As coisas parecem doer mais no inverno, como se todo mundo estivesse ocupado demais preparando algo bem gostoso pra comer sozinho antes de dormir. 

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Tell me what you'll see

Estado civil: recém-separada. Pela segunda vez. Tantas coisas pra dizer sobre tantas coisas, tantas situações e circunstâncias que nos definem e de repente parece que só isso importa - se você foi (mais uma vez) maltratada, traída, subjugada, ingênua, mesquinha, hipócrita... De que adianta todo esse ruído dentro do peito? Vozes que perguntam sem querer respostas, todas aquelas dúvidas disfarçadas de certezas bradando aos sete ventos. Você chora sem nem conseguir elencar os porquês. É o que acontece quando a gente pede pra ver. E eu, tão envolvida que estou com os estudos do evangelho e com minhas tarefas na casa espírita, me recusei inúmeras vezes a enxergar o que estava diante dos meus olhos. Mais um episódio de incompatibilidade. Um mais um não pode dar um, não mesmo. Mesmo com todo o meu orgulho, egoísmo e desejo de continuar onde estava, a espiritualidade não pôde me deixar quieta. Veja, Érika. Veja. Se houver obstáculo tão grande quanto o medo, peça a Jesus para te carregar enquanto ele te mostra que você precisa saber, precisa reagir, precisa sair daí. Com a cabeça às voltas, cheia de ideias confusas, eu vi. Vi o descaso, o abandono de si, vi o desrespeito. Vi a calúnia, a humilhação. Vi a violência, a ira, vi o peso da luxúria. Por dentro meus tecidos repuxavam, meus ossos craquelavam. O peso da dor acaba por trazer a mudança - porque quando dói você TEM QUE MUDAR. Mudar de casa, de telefone, de perspectiva, de hábitos, de sonhos. Até achei que fosse mais fraca, e consegui, no meio do furacão, abrir os olhos e me ver grande. Forte. Segurando rojão. Subindo e descendo com uma obstinação que veio da minha única vontade louca de ser feliz. Entre um minuto e outro, aquela falta de ar e o choro involuntário e a vontade de mandar pra puta que pariu quem quer que tenha me jogado fora na mesma sacola onde estava escrito "nossos planos". Caralho... Quem faz isso? A outra parte que comprou seus planos e enrolou pra pagar e acabou atrasando as prestações pra se dar um chapéu novo. If the cap fits, let'em wear it... Você deixa a chave sobre o balcão e pensa que quando virar pra abrir a porta, aquela sua casa vai voltar pro proprietário, aquele chapéu novo vai vestir outra cabeça e a sua vai ficar pelada até você encontrar aquele boné velho, perdido na mala da boa e velha eu. Poderia estar resmungando, reagindo mal, me entregando a um dia ruim, maltratando meu corpo só pra esquecer, em festa estranha com gente esquisita, mas preferi escrever um pouco de bobagens, tomar dois litros d'água, ler um pouco e me preparar para aquele momento mágico em que você entra no Netflix como se tivesse atravessado o portal de Greyscow e, mergulhada em adrenalina, começa a navegar pelos trailers e sinopses em busca da série perfeita, aquela que pede maratona de feriado. Bem destemida, né? Nada... Tenho tido muito medo das pessoas, porque elas buscam alegria onde a alegria não habita; porque elas não aprendem com a dor; porque elas não sabem chorar; porque de tanto traírem elas se atormentam e se traem; porque elas acreditam que a anestesia trará redenção. Até ter outras coisas pra me definir além do meu estado civil, prefiro diluir essa dor com água e esperar pelo dia em que alguém vai me dizer (ainda que seja em sonho) que eu passei de fase no vídeo game, que o sol está doido pra me acompanhar em uma caminhada e que assim que eu botar o pé na rua vou ver várias versões de mim mesma nos olhos de quem quiser me acompanhar. Vim, paguei pra ver e sei que a vitória já pediu o Uber :)

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Pena

Quem me conhece sabe o quanto eu tenho um pezinho em tudo que é místico. Curandeiras, benzedeiras, chás, banhos e velas, rezas e cantos. Não chega a ser uma fé cega, mas é de dar gosto a forma como eu me entrego a certos rituais e acredito que minhas graças serão alcançadas só porque alguém me disse que elas seriam. Pois que entre uma igreja e outra, um guru e outro, consegui um emprego em Diamantina, a umas quatro horas de Belo Horizonte. Por se tratar de uma cidade histórica, muita gente acha que sabe muita coisa sobre o lugar - belas cachoeiras, eventos culturais, festas e cervejas artesanais, arquitetura barroca... O que pouca gente sabe é que a dez quilômetros do centro da cidade existe um vilarejo com menos de 500 habitantes, nenhuma farmácia, restaurante, hospital ou delegacia. Esse lugar é o Guinda, destino escolhido por muitos professores universitários para construírem suas tão sonhadas "casas em condomínio", pelo valor acessível dos lotes comparado a Diamantina e pelo uso quase que exclusivo da estrada, privilégio do qual os diamantinenses de raiz não usufruem - e que pavor de dirigir naquelas pedras by the way... Comecei minha jornada "nova vida em Diamantina" no Guinda, a convite de um amigo que foi fazer doutorado sanduíche nos States e deixou sua linda casa pra trás. Por medo da solidão, optei, algum tempo depois, por me mudar para uma pousada. Detalhe interessante: a pousada do Guinda oferece mais infraestrutura e conforto que muitas pousadas em Diamantina! A possibilidade de ver outras pessoas e dormir em segurança (sim, eu sou belohorizontina e tenho medo de dormir sozinha em uma casa sem proteção, ainda que seja no Guinda) fez bem ao meu coração. Num desses dias tranquilos, a dona da pousada, que me acompanhava no café, mencionou a dona Maria (poderia ser mais criativa, mas como estou contando uma história real, apresento a vocês mais uma dona Maria), benzedeira oficial do Guinda. Ofereceu-se para me levar até a casa. Lá fomos nós - Eliane, eu e minha fé míope. Batemos na porta; do outro lado, surgiu, instantes depois, uma senhorinha com menos de um metro e meio, magrinha, sem um dente na boca, com um pano na cabeça e um olhar meigo de gente que já se resignou há muito. Nos convidou a entrar em sua casa de três cômodos (o banheiro é uma fossa do lado de fora), que divide com os filhos e netos - o quarto conta com uma única cama de casal, constatei no dia seguinte. Na sala, um guarda-roupas velho, uma estante, uma mesa e um sofá engalfinhados - cada um de um tipo, tudo usado à exaustão. No sofá, um garoto com problemas físicos e neurológicos se debatia tentando se comunicar. Dona Maria nos apontou dois bancos ao lado do sofá, no corredor, para nos sentarmos. Não me lembro exatamente o que se passou, tão impressionada fiquei com aquela cena. A casa, soube pela Eliane, dona da pousada, era cedida por um morador, e ela sobrevivia de doações. Acordei do transe com a senhora pedindo que eu segurasse uns ramos colhidos no quintal enquanto ela oraria por mim. Ao final da oração, dona Maria apontou para as plantas que eu segurava e disse que estavam murchas - isso indicava que eu estava "carregada" (em outras palavras: coberta de mau olhado). Marcou uma consulta para o dia seguinte às nove horas. Extasiada, abracei esses bocados de verdade nova (e aqui entendo verdade como tudo aquilo em que se acredita) e me preparei para a consulta com ansiedade. Dona Maria esperou que eu adentrasse sua sala de estar pontualmente às nove horas (quem me conhece sabe que não sou nada pontual) para começar a organizar a casa. Fiquei sentada no sofá por uma hora até que ela me chamasse para dentro. No quarto, um banco no centro com água e uma vela; atrás da água e da vela, dona Maria, toda vestida de branco e cheia de colares e badulaques. Incorporou uma cabocla parideira, que assuntou, cantarolou, prescreveu banhos e rezas e me deixou numa saia-justa danada pra entender aquele pretovelhês, dialeto próprio dos caboclos. Nesse ponto da conversa, abro um parêntese para confabular com você que aí está, lendo atento a esta anedota: por que todas as vezes em que estamos diante de um preto velho ele afirma que estamos carregados e imersos em um mar de inveja, intrigas e mau agouro? Sou uma formiga perto dessas personalidades internacionais invejadas até a unha encravada que prosperam e não se deixam abater. Por que eu me deixaria? Dona Maria, agora cabocla parideira, seguiu por essa linha. Receitou uma pá de coisas, como se fossem a única forma de livrar minha pobre alma da maldição que a consumia dia após dia. Nessa toada, soube que sou uma pessoa boa demais, abençoada, que não quer mal a ninguém e que por esse motivo não deveria sofrer - mas esse mau agouro, ah, minha filha, esse não perdoa, não. E então ela disse: "Fia, que pena que a véia tem docê". E repetiu: "Tem muita pena docê, fia". Foi como um balde de água gelada. Procurei em vão recapitular aquela conversa até a hora da pena, vasculhando minhas memórias em busca de alguma queixa minha que pudesse ter gerado tal resposta. E o que latejava na minha cabeça era uma pergunta só: será que ela tinha pena daquela senhora cujo corpo pegava emprestado, que mora de favor e alimenta seis bocas com cesta básica doada e se amontoa com filhos e netos numa cama de casal todas as noites? Talvez não. Talvez dona Maria nunca tenha sentido pena de si mesma. Fiquei pensando no que ela faria se alguém dissesse que tem pena dela. Provavelmente ela riria aquela boca sem dentes e falaria que não lhe falta nada graças a Deus. O choque e a indignação diante da pena da cabocla parideira, no fim das contas, foram o ponto alto dos meus últimos dias. Percebi que, ao cruzar o mar das lamentações, peguei, lá atrás, um caminhozinho pouco conhecido rumo ao agradecimento e à perseverança no bem. Sabe aquela road not taken do Robert Frost? Pois é. Pegar esse caminho é legal, mas perceber que depois de tanto tempo e tantas provações você continua nele... meu amigo! Isso sim faz toda a diferença.