Quem me conhece sabe o quanto eu tenho um pezinho em tudo que é místico. Curandeiras, benzedeiras, chás, banhos e velas, rezas e cantos. Não chega a ser uma fé cega, mas é de dar gosto a forma como eu me entrego a certos rituais e acredito que minhas graças serão alcançadas só porque alguém me disse que elas seriam. Pois que entre uma igreja e outra, um guru e outro, consegui um emprego em Diamantina, a umas quatro horas de Belo Horizonte. Por se tratar de uma cidade histórica, muita gente acha que sabe muita coisa sobre o lugar - belas cachoeiras, eventos culturais, festas e cervejas artesanais, arquitetura barroca... O que pouca gente sabe é que a dez quilômetros do centro da cidade existe um vilarejo com menos de 500 habitantes, nenhuma farmácia, restaurante, hospital ou delegacia. Esse lugar é o Guinda, destino escolhido por muitos professores universitários para construírem suas tão sonhadas "casas em condomínio", pelo valor acessível dos lotes comparado a Diamantina e pelo uso quase que exclusivo da estrada, privilégio do qual os diamantinenses de raiz não usufruem - e que pavor de dirigir naquelas pedras by the way... Comecei minha jornada "nova vida em Diamantina" no Guinda, a convite de um amigo que foi fazer doutorado sanduíche nos States e deixou sua linda casa pra trás. Por medo da solidão, optei, algum tempo depois, por me mudar para uma pousada. Detalhe interessante: a pousada do Guinda oferece mais infraestrutura e conforto que muitas pousadas em Diamantina! A possibilidade de ver outras pessoas e dormir em segurança (sim, eu sou belohorizontina e tenho medo de dormir sozinha em uma casa sem proteção, ainda que seja no Guinda) fez bem ao meu coração. Num desses dias tranquilos, a dona da pousada, que me acompanhava no café, mencionou a dona Maria (poderia ser mais criativa, mas como estou contando uma história real, apresento a vocês mais uma dona Maria), benzedeira oficial do Guinda. Ofereceu-se para me levar até a casa. Lá fomos nós - Eliane, eu e minha fé míope. Batemos na porta; do outro lado, surgiu, instantes depois, uma senhorinha com menos de um metro e meio, magrinha, sem um dente na boca, com um pano na cabeça e um olhar meigo de gente que já se resignou há muito. Nos convidou a entrar em sua casa de três cômodos (o banheiro é uma fossa do lado de fora), que divide com os filhos e netos - o quarto conta com uma única cama de casal, constatei no dia seguinte. Na sala, um guarda-roupas velho, uma estante, uma mesa e um sofá engalfinhados - cada um de um tipo, tudo usado à exaustão. No sofá, um garoto com problemas físicos e neurológicos se debatia tentando se comunicar. Dona Maria nos apontou dois bancos ao lado do sofá, no corredor, para nos sentarmos. Não me lembro exatamente o que se passou, tão impressionada fiquei com aquela cena. A casa, soube pela Eliane, dona da pousada, era cedida por um morador, e ela sobrevivia de doações. Acordei do transe com a senhora pedindo que eu segurasse uns ramos colhidos no quintal enquanto ela oraria por mim. Ao final da oração, dona Maria apontou para as plantas que eu segurava e disse que estavam murchas - isso indicava que eu estava "carregada" (em outras palavras: coberta de mau olhado). Marcou uma consulta para o dia seguinte às nove horas. Extasiada, abracei esses bocados de verdade nova (e aqui entendo verdade como tudo aquilo em que se acredita) e me preparei para a consulta com ansiedade. Dona Maria esperou que eu adentrasse sua sala de estar pontualmente às nove horas (quem me conhece sabe que não sou nada pontual) para começar a organizar a casa. Fiquei sentada no sofá por uma hora até que ela me chamasse para dentro. No quarto, um banco no centro com água e uma vela; atrás da água e da vela, dona Maria, toda vestida de branco e cheia de colares e badulaques. Incorporou uma cabocla parideira, que assuntou, cantarolou, prescreveu banhos e rezas e me deixou numa saia-justa danada pra entender aquele pretovelhês, dialeto próprio dos caboclos. Nesse ponto da conversa, abro um parêntese para confabular com você que aí está, lendo atento a esta anedota: por que todas as vezes em que estamos diante de um preto velho ele afirma que estamos carregados e imersos em um mar de inveja, intrigas e mau agouro? Sou uma formiga perto dessas personalidades internacionais invejadas até a unha encravada que prosperam e não se deixam abater. Por que eu me deixaria? Dona Maria, agora cabocla parideira, seguiu por essa linha. Receitou uma pá de coisas, como se fossem a única forma de livrar minha pobre alma da maldição que a consumia dia após dia. Nessa toada, soube que sou uma pessoa boa demais, abençoada, que não quer mal a ninguém e que por esse motivo não deveria sofrer - mas esse mau agouro, ah, minha filha, esse não perdoa, não. E então ela disse: "Fia, que pena que a véia tem docê". E repetiu: "Tem muita pena docê, fia". Foi como um balde de água gelada. Procurei em vão recapitular aquela conversa até a hora da pena, vasculhando minhas memórias em busca de alguma queixa minha que pudesse ter gerado tal resposta. E o que latejava na minha cabeça era uma pergunta só: será que ela tinha pena daquela senhora cujo corpo pegava emprestado, que mora de favor e alimenta seis bocas com cesta básica doada e se amontoa com filhos e netos numa cama de casal todas as noites? Talvez não. Talvez dona Maria nunca tenha sentido pena de si mesma. Fiquei pensando no que ela faria se alguém dissesse que tem pena dela. Provavelmente ela riria aquela boca sem dentes e falaria que não lhe falta nada graças a Deus. O choque e a indignação diante da pena da cabocla parideira, no fim das contas, foram o ponto alto dos meus últimos dias. Percebi que, ao cruzar o mar das lamentações, peguei, lá atrás, um caminhozinho pouco conhecido rumo ao agradecimento e à perseverança no bem. Sabe aquela road not taken do Robert Frost? Pois é. Pegar esse caminho é legal, mas perceber que depois de tanto tempo e tantas provações você continua nele... meu amigo! Isso sim faz toda a diferença.
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