---Era uma vez um senhor que se casou com sua colega de escola. Nunca haviam imaginado que poderiam ser tão felizes. Realmente o foram, até que Leila, a colega de escola, faleceu em um acidente de carro. Na verdade, como contaram depois, o acidente foi provocado pela morte da própria Leila dentro do carro. Ela voltava de seu curso de bordado com a amiga Nice, quando, depois de três perguntas não respondidas, João, o filho caçula de Nice, disse à mãe que dona Leila não iria responder porque tinha dormido de tanto frio. Nice virou-se para olhar a amiga e bateu em uma árvore. João sobreviveu para contar a história.
---O nome do senhor era Armando. Aposentado há alguns anos, vivia para agradar a esposa. Levava e buscava a companheira em todos os cursos, em todos os lugares. E olha que eram muitos. Seu Armando nunca reclamou, seus olhinhos azuis brilhavam ao avistar sua pequena - assim ele a chamava. Sua vida terminou quando ligaram do hospital para dar-lhe a notícia. Ele estava de cama, com uma febre altíssima, e por isso dona Leila havia convencido o marido de que ele deveria descansar; ela iria ao curso de bordado com a amiga e vizinha. De que valia descansar agora? Quantas coisas ele quis dizer, quantas coisas quis que fizessem juntos... Andava desorientado pela casa, recolhendo tudo que ainda tinha seu cheiro, espremia os olhos para lembrar-se de cada sorriso, de cada traço presente no rosto dela. Apertava as mãos trêmulas e imaginava segurar a mãozinha quente de dona Leila, sua colega de escola.
---A vida que terminou não podia terminar na verdade. Seu Armando era muito católico e sabia que não poderia jamais atentar contra a própria vida. O que ele decidiu fazer foi bem simples - sentou... e esperou. Rezava fervorosamente e pedia a dona Leila para vir buscá-lo, todos os dias. Fez contato com outras dimensões, organizava reuniões mediúnicas na sala de sua casa. E, claro, sempre recorria ao seu tercinho bento na hora de dormir.
---Passados alguns meses, começou um dia a ouvir sua voz, bem ao longe. Rezava e pedia "Meu amor, minha pequena, me leve com você". Ainda não conseguia entender o que lhe respondia a vozinha de dona Leila. Aos poucos, ela foi se tornando mais firme, mais próxima, mas ainda assim seu Armando nada compreendia. Dona Leila apareceu num dia de chuva, no meio da sala de jantar. "Graças a Deus! O Senhor seja louvado! Minha pequena veio me buscar, hosana nas alturas!" Já ia se levantando da poltrona, quando dona Leila o interrompeu com um gesto brusco. "Olha, bem, infelizmente você não pode vir comigo para o reino dos céus". Seu Armando caiu na poltrona, incrédulo. "O que é que você está dizendo, pequena? Você não está aqui pra me buscar? Já não sofri o suficiente? Tudo que eu quero é ficar do seu lado por toda a eternidade." Dona Leila respirou fundo: "Pois é, bem, mas não vai dar." Seu Armando, paralisado, tentava decifrar a feição neutra da esposa, aquele rosto tão agradável... que nada dizia. Depois de alguns segundos, dona Leila tomou fôlego e falou de uma vez: "Você não pode subir comigo ao reino dos céus porque você me traiu, Armando." Pausa. Longa. O pobre homem achou que iria enfartar ali mesmo. Tentou buscar dentro da cabeça uma única brecha em sua conduta, já que havia dedicado toda uma vida àquela criatura que agora o acusava à queima-roupa. "Quando a gente morre, recebe um filme sobre nossas vidas, sabe? Nesse filme vi você, em 1958, de mão dada com a Wandinha da sorveteria dentro do cinema." Seu Armando olhava a mulher, perplexo. "A gente já namorava, Armando." Dona Leila tentou segurar o choro. "Enfim, Deus, Senhor misericordioso, me perguntou se eu te perdoaria por isso, essa sendo a condição para que você viesse a me acompanhar na eternidade." Pausa. "A resposta você já sabe." Choque. 10.000 Volts.
---Seu Armando, 69 anos, bonitão e cheio de vida - e de dinheiro - não acreditava no que ouvia. Ficou quieto, enterrado em sua poltrona, por alguns minutos. A mulher olhava pela janela, também em silêncio. "Quer dizer que você vem lá do além pra me comunicar que não vai me levar." "Isso mesmo." O homem levantou-se devagar, com certa dificuldade, e foi até o telefone. "Espere aí." Ligou para Tânia, uma gostosa que participava das reuniões mediúnicas e dava bem em cima dele. Em cinco minutos o interfone tocava. "Agora pode ir, tenho visita." Dona Leila, incrédula, assistiu ao momento em que a porta se abriu e aquela ruiva escultural entrou sexy e sorrateira como uma tigresa.
---Seu Armando morreu pouco depois; sofreu infarto fulminante durante o coito. Dizem seus companheiros mediúnicos que foi pra um lugar muito quente, cheio de festas, música alta e gatinhas de biquíni. Nunca na vida ele havia estado em um lugar como aquele. Tenho pra mim que ele não achou ruim, não.
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