- Mas a que horas mesmo ele chega?, perguntou o menino já aflito.
- Sei não. Ninguém me disse nada não senhor – a voz vinha rouca do quarto de dormir.
- Mas você tinha que saber, uai... Até quando vou ter que esperar?
A segunda pergunta não encontrou resposta; retumbou pelas paredes da casa escurecida pelas cortinas e pelo tempo lá fora.
- Quero comer alguma coisa.
Ela concluiu que naquele dia o menino não a deixaria em paz. Suspirou resignada antes de fazer a pergunta:
- Quer que eu esquente o almoço?
Olhou para o menino quase sem reação.
- Pode ser.
Passos lentos a levavam quando ele mudou de ideia.
- Pensando bem... não quero almoço. Quero um suco de morango com laranja.
- Não tá em época de morango não senhor.
- E daí?
- Daí que não tem pra vender não senhor.
- Eu tinha mesmo era que processar esses supermercados por não venderem fruta fora da época. E tinha que te processar também por ser tão sonsa. Devia ser proibido trabalhar na sua idade.
A velha senhora pareceu não se incomodar com as brasas quentes que o menino usava para açoitar-lhe o lombo. Mergulhou nos lençóis brancos que cobriam-lhe a face enrugada enquanto os estendia sobre a cama dos patrões. Pensou em Dimas; se meu bom Dimas aqui ainda estivesse, estaríamos numa hora dessas a envelhecer as carnes no conforto da roça. Mas ele se fora, e com ele o único filho do casal. Não havia mais ninguém.
- Maria?
A voz da patroa a despertou de um transe. Quanto tempo estive a sonhar? Já não importava.
- Rodrigo está esperando o suco.
- Já disse a ele que não tem morango pra comprar não senhora.
- Gente, compra polpa então!
- O menino reclama quando não é natural, não gosta de polpa não senhora.
- De onde você tirou isso, criatura?
- Da última vez ele jogou o copo no chão com suco e tudo, a senhora se lembra, não?
- Já te disse para não falar essas coisas! Meu filho jamais faria uma coisa dessas. Não é, meu filho?
- Claro que não – resmungou o menino agarrado às calças da mãe. – Eu devia é te processar por calúnia, sua velha bruxa!
A mãe sorriu.
- Esse aí vai ser advogado que nem o pai. Já sabe o que quer aos oito anos de idade, esse danado!
Com os pés a gritarem por socorro, a serva preparou o suco de laranja para o filho da patroa. Um sopro de energia a conduziu com dificuldade até o menino.
- Seu suco, Rodrigo.
- Pra você é Seu Rodrigo. Não é assim que você chama meu pai?
- Pois não, Seu Rodrigo.
Virou-se devagar e deu a volta em si mesma, tempo cambaleando sobre o espaço. Uma brisa fina ajeitou-lhe a carcaça, vestindo suas carnes da mais pura dignidade. Sentia os ombros pesarem-lhe as costas quando seus olhos encontraram Dimas a abrir-lhe as janelas. Sem dizer palavra, estendeu-lhe a mão com um sorriso e a convidou para espiar lá fora. O sol subia bonito como uma tocha de luz, enquanto nuvens e estrelas afagavam-lhe os longos cabelos. "Meu Deus! Um momento inteiro de felicidade! Não será isso o bastante para uma vida inteira?"
...
- O nome dela é Maria.
- Maria de quê?
Silêncio.
- Querida, qual o sobrenome da Maria?
- Nâo sei, nunca perguntei.
- Algum documento, senhor? Identidade, carteira de trabalho...
O casal se entreolhou, surpreso. Não havia nada.
O marido explicou, perguntou, checou.
O marido explicou, perguntou, checou.
- Precisamos da documentação para a internação, senhor.
- Mas isso é um absurdo! Quero ter uma palavra com o seu superior imediatamente!
A mulher o tomou pelo braço. Afastaram-se um pouco.
- O que foi?
Duas mãos apertadas uma contra a outra instigavam um rosto pálido e confuso.
- Não é esse o nome dela? Ela está na família há 50 anos!
- Sua mãe a chamava de Maria, ela nunca se opôs.
- Mas e o nome dela?
- Maria, ora. Se ela nunca se opôs...
A família andava a passos rápidos em direção à resposta. O filho conseguira enfim verter lágrimas com um truque de escola. Os pais queriam poupar o menino e ele fingia que entendia o que aquilo significava.
Os médicos fizeram o possível, e por algum motivo acreditavam que não haviam conseguido salvá-la.
- Angélica.
- O quê?
A mulher suspirou, visivelmente emocionada. Trazia na mão a única página escrita da história da empregada, um bolo amarelado de letras e números que por algum motivo ela guardara no bolso da saia.
- O nome dela era Angélica.
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