... fazia conjecturas das mais profundas sentado àquela mesa. Acompanhava-me uma garrafa de cerveja que, para minha tristeza, não esboçava qualquer sinal de condescendência ou reprovação. Era uma terça-feira morna e eu olhava em volta - mesas ocupadas por dois casais e uma pá de figuras solitárias (se bem que poderiam estar realmente somente sozinhas, mas sei que o drama em doses homeopáticas me cai bem). Mirei-me com os olhos de fora: camisa denunciando os agastares do dia, mãos levemente ressequidas, unhas pra cortar, calças pra lavar, cinto comprimindo a barriga num misto de culpa e redenção. Eu bebo sim... e daí? Apeguei-me a essa ideia do e daí que pode querer dizer e depois. A pergunta não é por que e sim para quê, meu jovem - overheard; overruled. O depois pede o antes e o antes até àquela hora já havia sido ruminado - digerido e reciclado - sem - pasmem - grandes (r)evoluções. Servi mais um copo e observei mais cautelosamente aquela cena. Pensava em criar histórias pra cada uma daquelas pessoas, mas rapidamente me dei conta que nenhuma delas queria voltar pra casa, que aquele era um momento simples de sossego, de pausa, de adiamento de conversas importantes com o espelho. Não entendia por que não podia simplesmente tomar minha cerveja, mangiar a ceia e esvaziar a cabeça. Beber já não era um jeito de escapar de mim. Xeque-mate. Eu me rendo - dessa bebida não provo mais. Com as ideias confusas e a vista turva de banzo e de noite, vi se aproximar uma menina; não, uma moça; não, espere, uma (jovem?) mulher. Uma jovem. Uma mulher. Uma mulher jovem, com roupas de quem mora perto, jeito compassivo, olhar frágil, distraído. Desconectado. Trazia consigo um cachorro, que buscava em cada passo a novidade, que nem mandava nem desmandava - estava ali, companheiro meio despreparado pra missão de cuidar dela, leal por afeto, por gratidão, porque a vida assim o fez. Trazia aquela energia caótica de quem quer sair, quer ficar, quer morar naquele abraço e abraçar outros cantos do mundo de uma vez. Volta e meia era freado pela própria coleira, que a jovem mulher (não consigo pensar em outra forma de chamá-la), a essa altura, havia sem alarde prendido ao pé da cadeira. Fiquei me perguntando o porquê de uma pessoa levar um cachorro a um bar e prendê-lo ao pé da coisa toda. Carência? Culpa? Medo do desconhecido? Enquanto eu me ocupava em julgá-la, ela colocou um livro grosso na mesa, abriu o livro na parte marcada e tirou dele uma caneta. Já havia ali uma cerveja e um copo pela metade, que ela tomava com tranquilidade enquanto olhava com atenção a página aberta. Ficou com a caneta na boca por um momento e começou a escrever no livro. Eram palavras cruzadas. Por vezes ela passava minutos inteiros olhando pra um ponto fixo; de repente, seu rosto se iluminava e ela saía escrivinhando pra qualquer lado. Tomou toda a cerveja, pediu um peixe, que dividiu com o cachorro, pediu outra cerveja com a delicadeza de quem pede uma taça de vinho em um lugar sofisticado e prosseguiu cruzando a caneta por terras inexploradas. Houve uma parada maior que o habitual. Ela forçava a vista, olhava pra cima... Respirou fundo, pesadamente. Foi até o final do livro, copiou alguma coisa e pude notar a frustração ética no retesar do seu corpo enquanto escrevia aquelas novas palavras, vocabulário que ela ainda não dominara, e, queria crer, por esse motivo não existia. Depois da ginástica mental, ela teve que olhar a resposta - fim da linha, bebê. O perfeccionismo vai te engolir viva, moça, tive vontade de dizer. Mais um gole, um suspiro, uma nova cruzadinha em branco. Resiliência. Resignação. Passatempo. Passa, tempo, que nessa atividade quase autista de adivinhar palavras ela vai marinando suas dores e seus dilemas em água morna. A cerveja acabou logo depois do peixe. Ela organizou os leftovers meticulosamente e, como em um ballet coordenado, pediu a conta, serviu-se do último copo e deu o último gole logo após o pagamento. Fechou o livro, tomou a coleira e foi por onde tinha vindo, sem bolsa, sem telefone, sem maquiagem, sem relógio, sem pânico, sem pressa. Tomou uma fatia de tempo como se ninguém ou nada mais existisse, como se a vida fosse uma peça que parei pra assistir quando ela parou docemente de insistir que mais alguém caberia naquela equação.
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