O ano era 2003. Pausa. Não sei quantos anos eu tinha quando comprei alguma coisa numa loja cara, daquelas pelas quais eu passava de cabeça baixa pra não ter vontade de entrar. Que sonhos são esses vendidos pelo capitalismo... Que loucura é essa de comprar dignidade, integridade, status, de comprar a próxima desculpa que você vai usar pra tentar se convencer de que está fazendo a coisa certa enquanto aquele aperto no peito te responde só que não? Fui ao centro espírita essa semana e meu mentor me disse que eu me encontro numa frequência de expiação, de pagamento de dívidas - e quem sou eu afinal pra chorar, espernear e achar que já paguei muito mais do que deveria? Eu, uai. No auge do meu desespero, ouvi dele que o desespero é bom, chama o fim da prova. Em meus momentos de desequilíbrio me considero bem dostoievskiana, naquela impáfia do só se vive uma vez, correndo perigo, me arriscando ao passar um cartão que vou suar pra pagar, só pelo gostinho de não ser medíocre, de permanecer inrotulável, de me surpreender - veja você que looping... Olho pra minha casa, pras coisas materiais que consegui, pro fato de gastar mais do que eu ganho como uma compensação pelo fato de não ter ninguém pra deixar nada quando eu me for mesmo tendo desejado tanto uma Alice e um Romeu plantando bananeira e dando estrela no quintal... Olho pra trás e me pergunto se eu ferrei de vez a minha vida ao sair de casa sem olhar pra trás ou se aquilo foi o marco inicial dessa história de lutas, dívidas e aprendizado que eu invariavelmente teria que viver. Ééééééééé... a vida não tem replay. O Cazuza disse que adorava um amor inventado, e só entendi isso quando, após um período amargo de luto não finalizado, cansei de tentar esperar a chuva passar e tentei fazer o mesmo. Parece estranho e até cínico, mas não é proposital nem deliberado. A gente quer amar, então surfa na onda de quem está ali disposto. A gente curte a companhia e fica até feliz, mas sabendo que, diferente de companhia, companheiro é outro departamento. A gente se joga porque tem medo de passar a vida procurando por um brilho no olho, um coração batendo acelerado, um transe, uma dormência, uma paz inexplicável em caber num abraço, em se despir sem pudor nenhum, em unir bocas e se enlaçar naquele corpo quente e sedento pelo seu... em fazer carinho e falar de sentimento de um jeito aberto, bonito, direto e rir junto, e rir antes, durante e depois, e rir ao lembrar de tudo isso e chorar de emoção. Pausa. O ano era 2003. Namorava há um ano com a pessoa que passaria mais 11 anos do meu lado. Cursava Letras/Inglês e as disciplinas de literatura eram simplesmente arrasadoras - nessas horas agradeço sinceramente pela minha oversensibilidade - eu sentia tudo! Amava decodificar o inglês arcaico e todo o romantismo ensandecido que ele carregava nas costas. Numa dessas viagens literárias apareceu a frase "Dost thou know I love thee?" - ela virou o nosso eu te amo na terra de dragões e gigantes, príncipe e princesa que sonhavam, cada um à sua maneira, com paz no castelo. Não nos falamos - presente do indicativo. A relação acabou, o sentimento se transformou, mas esse ressentimento que ficou do outro lado impediu o contato. Às vezes me pergunto: vai passar? Vou ter que esperar essa chuva toda cair pra sair na rua? E se eu quiser me molhar, será que alguém vai surgir em pé na esquina com um sorriso, um guarda-chuva e vontade de me aninhar? O ano era 2003 e agora, quase 20 anos depois, ainda ecoam os erros, os acertos, as investigações, decodificações, paranoias e mitos que o E se? tentou plantar aqui dentro. O capitalismo, o consumismo, o alcoolismo, tudo isso é explicável e previsível - queria que amar desse jeito certo, com lacunas e renúncias, também pudesse ser.
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