quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A mulher que nasceu em janeiro

Era uma vez um homem que cresceu e passou a sentir que viver era um incômodo tremendo. Não havia nascido para receber ordens, repudiava qualquer regime ou sistema e considerava a concepção simplista de felicidade algo ingenuamente patético. Encontrava na vileza prazeres particulares, e sentia o canto da boca esboçar um sorriso quando não havia graça nenhuma. Não entendia por que uma máquina fraudulenta e putrefata haveria de governar seus passos, ditar seu caminho, oferecer o que chamavam de uma vida digna. Quer dizer que inventaram um novo nome para a mediocridade? Achava o criador de tal tragédia anunciada  um tanto sarcástico, especialmente quando seus olhos famintos passeavam por bandejas de delícias e eram compelidos a dizerem não. Via a ignomínia de sua raça com desdém e desespero - afinal, era um prisioneiro do capitalismo e de tal destino não poderia fugir. A vida comum era um verdadeiro despropósito, mas os excessos... nada poderia ter menos sentido que os excessos, porque entender o desgosto e a insatisfação que eles evocam é quase tão triste quanto ter que evitá-los; quase tão vazio quanto mentir continuamente para não ser considerado um louco ou um idiota completo. Lia Goethe, Flaubert, mergulhava na indocilidade febril de Werther e Emma Bovary, sorvia Dostoiévski com uma garrafa de brandy e meia dúzia de comprimidos - fechava os olhos e suava frio porque sabia que adentrava um caminho sem volta, porque sentia que aquelas pessoas eram muito mais que meros personagens: eram a prova de que aqueles senhores haviam descoberto o segredo mais profundo da existência humana, e tal revelação fizera com que sentimentos como a esperança e a fé se transformassem em frágeis muletas das quais não poderia mais se servir. É isso o que somos, é isso o que temos - o que fazer quando pedem que você vá por um caminho que não leva a lugar algum? Pensava em Dorian Gray e se perguntava: será que o amor poderia tê-lo salvado? Não: o amor é o prelúdio do infortúnio - quando demasiado, o calor dentro do peito nos impede de viver; quando comedido, o aroma morno do júbilo nos proíbe de morrer.
 *
Os livros me trouxeram a verdade sobre o destino a mim reservado, concluiu certa vez. Sou meio-homem, meio-lobo, e ambas as minhas cores me assombram, me deprimem, me angustiam de forma sufocante. Jamais serei feliz; estou condenado a uma vida sem amor porque nele já não creio. O que me resta agora é evitar a cadeia, o hospício e comportamentos que me levem a discutir qualquer coisa, porque esse segredo de chumbo sobre meus ombros me deixa constantemente muito cansado para embates e argumentos. Por que discutir sobre uma natureza que não posso mudar, sobre uma existência limitada, frívola e previsível? Por que arriscar-me na incerteza e deixar que meus instintos me dominem se o mundo não vai evoluir para compreender-me melhor? Por que sou fraco a ponto de não conseguir dar cabo em tudo isso? Se eu pudesse ao menos escrever um romance, daria vida aos meus desejos mais baixos, exercitaria meu cinismo com aclamado requinte... correria inescrupulosamente sobre pernas alheias. Suspirou; a ansiedade tomava seu dom pelas mãos - compreendia que seus nervos frágeis não permitiriam que ele passasse da primeira página. Prostrado na cama, envolto em névoa e calor, ele dormiu.
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O tempo passou; o homem se rendeu: conseguiu um emprego estável, uma casa decente e relações exteriores saudáveis. Ainda tem ímpetos selvagens, que compensa com pequenas extravagâncias, muitas delas de teor secreto e infame. Sente um estranho prazer ao chegar em casa - abre a porta e procura aflito pela dose diária de redenção. Lá está ela, estirada no sofá, olhos analíticos sobre a vida de Harry Halle. Pisca para ele por cima do livro mas não sorri. Não há segredos visíveis entre eles - são duas vítimas da solidão. Ele sorri e finge para si mesmo que aquela vida lhe basta; não quer mais ser solitário. Ela o envolve em uma aura de mistério, de desejos caprichosamente oprimidos, e suas múltiplas facetas causam nele um fascínio avassalador. Ela muda para passar o tempo; ele não pode mais viver sem a confusão que ela incita; e o tempo passa. Ele se ergue de novo - está convencido de que dessa vez viu a luz, está no caminho certo. Ela faz que sim com a cabeça e escolhe a roupa que ele usará em seu aniversário. Ele a vela com um amor louco cheio de medo - quer que ela fique tranquila mas a verdade é que aquela tranquilidade dá medo demais. Por vezes ele inspeciona seu corpo moreno em busca de um fio solto de alma e se pergunta quem ela é. Há muito tempo ela o sabe: é a mulher que nasceu em janeiro, a companheira do lobo da estepe. 

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