Foi num sábado abafado e calorento. Subia o morro para chegar em casa, depois de seis horas trabalhando sem parar. Da minha testa pingava suor. Minha pasta pesava uma tonelada e eu me fixava em uma única necessidade: a de abrir a porta, jogar aquele tijolo no chão e entrar debaixo da água gelada. Pode ser realmente escaldante em dezembro, concluiu minha massa mole que se arrastava pelo passeio desnivelado. Calor. Cansaço. Fome. Raiva! Mas não, não, nada de desvirtuar o pensamento daquela aguinha gostosa esfriando aos poucos meu corpo quente, carregando consigo aquele suor impregnado, refrescando a carne... Como num passe de mágica lá estava eu, chave na mão, olhos pequenos, sorriso estúpido no rosto. Abri a porta e quase tive um ataque do coração ali mesmo. De trás de cada móvel foi surgindo uma sombra, tudo muito rápido, tudo ao mesmo tempo. Na penumbra, não via nada com clareza. Acendi a luz e a multidão acalorada que agora tomava conta da minha sala gritou "surpresa!". Olhava para meus móveis de forma a me certificar que aquela era realmente a minha casa. Mas como, quem tem a ch.... Não precisei concluir meu pensamento. Gilda. Da cozinha ela vinha, rebolenta e pintada como uma chacrete, segurando um bolo cheio de velas. Vinha sorridente, pediu inclusive para apagarem a luz, e seus olhos brilhavam de satisfação por ser a dona da idéia, a anfitriã da festa. Com chapeuzinhos e línguas-de-sogra, os convidados, sujeitos cujo telefone estava anotado em uma agenda de 1983 - entre eles uma tia doente que só sai de casa em ocasiões festivas -, se organizaram em volta da mesa e sem demora iniciaram a cantoria. Cantaram o big, o com quem será, e outro parabéns porque o fogueteiro acabara de chegar. Como eu não soprava as velas, alguns dos presentes começaram a me questionar. Gritos de "sopra" foram emergindo, até gritarem todos em uníssono, com os punhos fechados e os braços para cima, como num show de rock ou um jogo de futebol. Gilda aproximou-se. Passou o braço em volta da minha cintura e falou bem mimosa ao meu ouvido "Sopra as velinhas, meu amor, sopra". Esperei a comoção terminar e, sem alterar o tom de voz, olhei para todos, a seguir para Gilda, e disse "hoje é aniversário do seu ex-marido Paulo Ricardo, Gilda; o meu é em maio". Silêncio. Puro e absoluto. Todos me olhavam incrédulos, boca aberta, olhos esbugalhados. Gilda não conseguia dizer palavra, o corpo paralisado, a face lívida. Fui tomado por um desejo incontrolável de rir-me daquele espetáculo patético. Minha gargalhada saiu de repente, ácida e sonora. Um a um, os presentes começaram a rir também, e pude ouvir alguns suspirando aliviados: "puxa, esse Roberto... quase caí nessa!". Ligaram o som, trouxeram a bebida e caíram na farra. Fui tomar meu merecido banho e por lá fiquei, mas minha ausência definitivamente não foi problema para que a festa fosse realmente de arromba - foi até as cinco da manhã. No dia seguinte o porteiro me felicitou animado, e ainda teve tempo de dizer que uma certa senhora deve ter exagerado no salgadinho, porque saiu logo depois dos parabéns, cambaleando e branca como um fantasma.
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