quinta-feira, 6 de agosto de 2009

O GATO


Andavam pela noite – ela e o gato. Nunca se soube como ele acabou por aparecer ali, de um jeito tão estranho, e passou a ser sua companhia. Andava e sentia calor e olhava para os lados e não via ninguém – já não podia – e sentia o sereno umedecer-lhe os cabelos. Num ímpeto, deu um salto e tirou os sapatos. Queria vento, lembrava daquela tarde em que chegou à praia com seu pai, infante persuasiva, doce e cheia de caprichos. Caminhava devagar e sentia o mormaço daquele dia, e simplesmente não acreditava que tudo andava tão errado e era quente como o inferno deve ser. Queria que seus cabelos se mexessem com força enquanto o sol queimaria sua face fatigada e entraria em seus braços e suas pernas. Sentiu raiva e pensou que era um absurdo os filmes mostrarem coisas que nem de longe acontecem, e quis cortar cada fio de seus grossos e imponentes cachos, e fazê-lo com uma tristeza calculada, deixando um pouco de ódio em cada tufo que deslizaria pelo seu corpo. Pensou e abriu a bolsa e procurou algo cortante – tinha que fazer aquilo agora, não haveria outra hora nem outra chance. Mas, para surpresa de Jose Andrada, a única coisa cortante que encontrou foi um pedaço de papel e um pedido de casamento. Era tarde, o calor confundia seus pensamentos. Ela jogou a bolsa para algum lugar e deitou-se no chão. Começou então a mover-se lentamente, primeiro as mãos, depois os braços e as pernas; em pouco tempo estaria contorcendo-se inteira, numa convulsão de soluços e nervos, com tamanha irracionalidade que mataria de inveja qualquer bicho. Foi assim que ela havia persuadido o pai a ir à praia, e era assim que tentava inconscientemente convencer a si mesma de que alguma coisa tinha que acontecer – ali e agora. Afinal, considerava o pai um sujeito inteligente, e foi ele mesmo que entendeu com aquele chilique que aquele seria o momento ideal para desenterrar seus mundos e fundos e levar sua doce filhinha até as ondas mais bonitas, até a areia mais fofa. Manipular-se deveria ser um tanto mais fácil e conveniente. Levantou-se muito lentamente e pôs-se de joelhos, na tentativa de se recompor. Sentia-se pálida, dormente, num misto de fantasia e tragédia. Um calafrio real torceu-lhe a coluna. Quase desacordada, olhou para o lado. Ora, pois se não era o gato! Figura pequena e estranha, a fitá-la em silêncio. Paralisado... O gato a havia seguido por toda a noite, e agora tinha nos olhos uma pena sarcástica, mas tão sarcástica e sombria que quem o visse julgaria que o maldito sorria! Não havia dúvidas: o negócio era dar cabo no bichano. De súbito, uma alegria descomedida pôs-se a pulsar em suas veias, a cor voltou a suas faces. Reluzente, ela se refez por inteiro e pôs-se a olhar para o animal fixamente. Agradeceu a ele por estar ali até aquele momento, por ter aceitado seu destino desde o início. Pegou o gato com carinho, envolveu o bichinho com imensa ternura e, emocionada, sufocou seu companheiro até o último gemido. Levantou-se, pegou um táxi, foi à Obra e voltou às seis. E foi assim que Jose Andrada dormiu o sono mais profundo de sua vida, a partir das sete e meia de uma bela manhã, quente como o inferno deve ser.

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