Deixou pra trás os pedaços de dentes que se misturavam à louça do jantar espalhada pelo chão. Foi até a porta e num segundo estava do lado de fora. Olhou para a casa modesta e caminhou devagar pelas ruas tão familiares. Seu salário comprava agora metade do que o fazia cinco anos atrás. Pensava naquele comediante americano que definiu o mecanismo das três classes sociais dominantes: a classe alta fica com todo o dinheiro e não paga nenhum imposto; a classe média paga todos os impostos e faz todo o trabalho; os pobres estão aí só pra encher a classe média de medo. Segundo ele, os políticos mantêm as classes média e baixa brigando bastante enquanto pegam todo o nosso dinheiro. A noite estava calma e dessa vez ela teve tempo de pensar que talvez ele tivesse razão.
Conhecia muito bem aquele caminho - diria que até bem demais. Ele dava em um hospital simplório, precário, o único da cidade. Ironia ou não, o hospital ficava ao lado do cemitério. Todas as vezes olhava com terror para as lápides que se erguiam soberanas em meio à vegetação mórbida e azulada, e unia suas últimas forças para conseguir completar o trajeto. Ele bebia e batia nela; era assim. No dia seguinte ele chorava e pedia desculpas - e além do mais, ela não tinha para onde ir. As desculpas para si se alternavam, e a esperança de dias melhores a punha de pé todos os dias. Na primeira vez ela pensou que seria a última. Bem, acho que mais rezou do que resolveu-se acerca desse problema. Os amigos queriam que ela denunciasse; o pessoal do hospital não aguentava mais vê-la daquele jeito. Tentara em vão fugir algumas vezes, mas logo o dinheiro acabava e a falta de experiência era sempre maior que a vontade de ter alguma. Então ela voltava e lá estava ele, acabado em uma poltrona, olhos brilhantes pela possibilidade de um novo combate.
Naquele dia dirigiu-se ao seu habitual destino no horário de costume - depois da meia-noite para não se expor aos vizinhos. Havia, porém, algo diferente nela. Assoviou uma velha canção enquanto sentia a brisa acariciar-lhe o rosto. Nunca uma noite havia sido tão bonita, e ela, emocionada, chegou a sorrir. Há quanto tempo não sorria! O sorriso se transformou em uma enorme gargalhada, e ela dançou pela terra batida com os pés descalços, sem medo, sem dor, sem culpa alguma. Sentou-se em um banco de praça e por um bom tempo contemplou a lua e seu manto de estrelas. (...) Parou à porta e percebeu que o hospital estava mais movimentado que de costume. Caminhou a passos leves e avistou o doutor, os enfermeiros, uma ambulância, a recepcionista, todos aos berros, todos tentando arrancar com as mãos o desconsolo do peito. Preocupada, aproximou-se da maca que acabara de ser retirada da velha ambulância. Mal pôde acreditar no que via. Era ela; estava morta.
* A frase "Paz, saúde e sorte" é o lema de Andrea Amendoeira (Deinha)
* A frase "Paz, saúde e sorte" é o lema de Andrea Amendoeira (Deinha)
Ei, Érika!! Que bacana o seu blog! Gostei muito desta crônica!
ResponderExcluirObrigada pela lembrança!
Beijos
Paz, saúde e sorte! rsrs
Para você também, minha querida mentora! Beijo!
ResponderExcluir