E para transformar solidão em solitude (letra feia forçada em caderno de caligrafia que não termina), lembrei-me de contar casos pra mim mesma no meu cantinho esquecido, cachorro molhado de ficar pra fora em dia de chuva, sem memória de quem o deixou ali - só com memória de amor. Escrever era nada obrigação, era ritual mesmo, um barulhar de teclas que me levava a mundos distantes, castelos encantados, desventuras, insatisfações e desapegos e verdades e gratidões de muitos jeitos e luzes... sempre luzes. Eu me levantava sorrindo da cadeira, como se tivesse acabado de fazer uma acrobacia num lugar impossível. É, eu gosto de rituais. São como sonhos no meio desse mundo de pedra, conforto nessa areia fofa e quente que a gente atravessa todo dia até ficar cansado. Há algum tempo meu ritual de terça à noite é sair do trabalho às dez e quarenta e sentar num bar perto de casa. Peço sempre a mesma coisa, chamo um livro pra me fazer companhia e saboreio cada página com churrasco e cerveja. Hoje, depois de um dia grande demais, umas horinhas de descuido e redenção. Redenção. Abordou-me um senhor bem apessoado, de uns 60 anos, com a cortesia que ao bar sempre foi habitual. Fiz aquele pedido que nunca vai dar errado e o senhor se afastou, calmo e resignado. Podia jurar que estava feliz. Vi aquelas pessoas às onze da noite com bebês de colo no meio do boteco e tentei pensar se eu não faria a mesma coisa - estava calor, ele precisava dar uma volta... Sem mais. Chegou a cerveja. O churrasco veio logo depois. Dei a ficha ao moço jovem e sorridente enquanto ele deixava meu jantar sobre a mesa e tirei a outra do bolso esquerdo da camisa. "Essa é a ficha da cerveja. Esqueceram de pegar". O rapaz agradeceu, olhou pra trás e avistou o senhor. "Pai, o senhor esqueceu de pegar a ficha da moça". O pai respirou e assentiu com a cabeça sem esboço de sono, tristeza... personagem de um filme longo demais até pra ele mesmo. O gole desceu difícil. Lembrei-me da série La casa de papel, Denver e Moscou: pai e filho tropeçando pela estrada da vida, colegas, irmãos de esperança. O herói vira companheiro de condução, de pito, de papo. Dependente no imposto de renda, parceiro nos pequenos delitos que se justificam pelo sobreviver. Modelo de conduta, de lealdade, de ser humilde, de estar aqui e lá pra você comer, meu filho, palavras que moldam todo um jeito de viver, sonos e sonhos que tomam outras formas quando a vida te chama na responsa e te fala "Anda! Sacode! Vive do jeito certo, do que tem mais amor". Tem gente que é tão pobre que só tem dinheiro, ouvi esses dias alguém dizer. O resto a gente acha num boteco em plena terça-feira às onze da noite, numa ficha guardada no bolso esquerdo da camisa... doida pra fazer a diferença.
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