O relógio da praça do Rosário
acabava de bater doze vezes. Sentada no alpendre da casa do meu avô, olhava
para a rua deserta e ouvia o cantar dos passarinhos com paciência. Do portão
para fora, o sol forte anunciava o primeiro dia do ano de 2014, que adentrava
vigoroso por nossas vidas. Em frente à igreja, a praça e seus bancos
antigos, doados por pessoas importantes da cidade em algum tempo perdido no
calor do asfalto. Coisa interessante essa de ter a vida atrelada a uma cidade
do interior – foi aqui que tudo começou. E quando digo tudo, penso nas
histórias de minha mãe e meu pai, que viveram separados por uma esquina durante
anos para se conhecerem em um banco da capital. Coisa interessante passar pela
escola frequentada por seus avós, antes alunos, depois professores; seguidos de
seus filhos, cheios de histórias guardadas na capanga de pano, entre cadernos e
travessuras. Minha avó e todas as suas irmãs foram professoras orgulhosas de
sua profissão – e depois dizem que vocação não se explica... Sentada no
alpendre, lembrei-me com carinho da última semana. Uma visita à minha tia
Branca, irmã de meu pai: quilos e metros de casos, fotos, detalhes de sua vida
em família que talvez eu jamais viesse a conhecer. Visita à casa de minhas tias
Iza e Lenita: Guarapan e pão-de-queijo. Andanças a pé pelo sol escaldante que
parece brotar da avenida: biscoito de nata, biscoito de queijo, caçarola e sopa
de galinha... açaí! Corei ao surpreender-me com as modernidades que
provavelmente estão longe de serem modernas por aqui. Nos almoços em companhia
de minha avó, casa cheia: família. Família e paçoca salgada, família e pamonha
doce, família e milho cozido, linguiça de frango, salada da horta, feijão
tropeiro que a dona do restaurante da cidade faz. Família com doce de figo que
dá no quintal; goiabada mole feita pela vó de alguém, doce de leite da fazenda
do vizinho, queijo fresco. Nunca pensei que faria tanto sentido saber de onde
eu vim e para onde posso voltar se nada mais der certo, se houver alguma coisa sobre a qual eu precise saber. Essas memórias passavam pelos meus olhos como slides
de um filme comprido, sem hora para acabar, quando irrompeu sobre elas a voz de
minha mãe. Uma menina de doze anos foi estuprada na noite de Natal; o irmão de
sete anos estava presente. Os pais haviam pedido que a menina e seu irmão
fossem à venda da esquina, durante a celebração, para comprar qualquer coisa
que estava faltando. No curto caminho, os irmãos foram atacados e levados a um
lote vago. A menina está na Santa Casa sem previsão de saída; o irmão está em
casa; os pais sentem-se culpados por terem exposto seus filhos a... uma tarefa
trivial. O agressor – um homem de Belo Horizonte contratado para construir
casas populares, com ficha na polícia – foi preso (onde? até quando?). Uma
imagem mental se formou rapidamente: uma fumaça negra passando pelo trevo,
resistindo aos buracos da estrada velha e avançando cidade adentro,
sufocando sapos, grilos e passarinhos... obrigando avôs e netos a fecharem suas
portas e ligarem a televisão. Nossos filhos não brincarão nas ruas por onde
corremos, despreocupados como fomos nem tantos anos atrás. O sonho de um homem
ridículo... sempre pensei na palavra humano como sinônimo de sensibilidade, de
emoção, até de escrúpulo, sabe? Humanizar, humanista, humanizador... e você vem
me falar em direitos humanos? Penso que temos opiniões diferentes sobre o que é
ser humano. O ser humano é imperfeito, vá lá; mas ruim, ruim de tudo,
desprovido de qualquer senso de limite? É como se a conta não fechasse. A noite
de Natal em qualquer cultura é dia de ganhar presente, nem que seja de Deus. Em
pouco tempo o almoço estava servido. Levantei-me da cadeira e deixei o alpendre
sem coragem pra trancar a porta, sem entender como exatamente tocar a minha
vida para que ela não seja tão pequena, tão minha... esperando que alguém me
diga para onde posso voltar se nada mais
der certo, se houver alguma coisa sobre a qual eu precise saber.
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