Ele me ensinou o querer da forma mais voraz porque assim também ele me quis; me moldou de acordo com seus desejos mais joviais. Dissemo-nos músicas inteiras, bradamos contos de livros diversos aos quatro ventos, brigamos e fizemos amor pelos quatro cantos de nosso pequeno-grande universo, devoramo-nos ao som de bons filmes e baboseiras sem sentido saídas de dentro da mesma televisão. Um dia divagou tranquilo sobre On the road, anos atrás. Não prestei muita atenção, ainda que ele tivesse me mostrado de relance uma coleção do Raul e outra do The Doors. Depois veio a matemática e molhou todos os discos de rock, as camisetas do Bob e aquelas fotos em que ele estava sempre tão bonito, talvez porque nem soubesse que um dia teria tanto a dizer. No amor penso que teve sorte: acha minha loucura engraçada, e ainda hoje me olha como se cada pedacinho de mim fosse de chocolate - me sinto a Audrey Hepburn...
Claro que tem o capitalismo e essa babaquice toda que vem com ele, que transforma velhos amigos em adversários na corrida maluca até o carro maior e a casa mais bonita, mas um dia notei que não era isso que o afligia. Não era isso... mas o quê? Ele falava, falava, mas nada dizia, até que ventos uivantes fustigaram o último suspiro da sua obstinação. Você entende que a bandeira branca não é uma solução?, seus olhos murmuravam sôfregos e eu simplesmente não entendia.
O mar estava bravo quando decidiu ir à praia. Tirou os chinelos, a regata branca, olhou para os lados e caminhou vagaroso até a primeira onda. Pulou mais uma, outra, perdeu-se na água gelada. Deixou lá a falta de praticidade, a falta de tempo e o medo do escuro; voltou sereno, bronzeado, e arrisco-me a dizer que sorria. Tomou-me pelo braço e caminhamos juntos até uma livraria com cheiro de sol. Quero te dar um presente, ele disse, e me entregou em pouco tempo o primeiro livro que me daria: a biografia de Jack Kerouac. Uma retrospectiva rápida passou pela minha cabeça - o manual de patifaria de Schopenhauer em cima da escrivaninha, Anos Loucos, as menções a Allen Ginsberg, O Lobo da Estepe - leia também Sidarta, você vai gostar - e eu com medo que ele lesse O Idiota. Ele sabia; viu a luz quando eu nem sabia que ela existia. Ele nunca conseguiu ser doce, jamais resignado, mas tinha ideais. Aceitei o presente como um convite a conhecer o seu mundo secreto, a mim novo e admirável. Passei a prestar mais atenção às minúcias de nossas conversas e percebi como elas eram interessantes. Iniciara um novo romance cheio de mistério e alegria, cheio de novas verdades a alimentar velhas expectativas. A admiração é a alma do negócio, lembro de ter pensado com meus botões.
Esses dias encontrei uma edição de bolso de Brave New World sobre meu criado. Retrospectiva: esse livro mudou a minha vida, ouvi ele dizer várias vezes. A nova cópia era para mim - apaixonei-me pela sábia sutileza. Ele passara por Kerouac e achava que havia saído ileso do outro lado da porta; precisava agora entendê-lo, e contava comigo para encher sua vida de outras certezas e descobertas.
Entregou-me a chave de sua essência e deitou-se ao meu lado para dormir; de repente me emocionou toda aquela confiança. Vamos mudar o mundo!, me deu vontade de gritar bem alto. Apaguei a luz e virei pro outro lado. Abre caminho que eu vou logo atrás, on the road, meu coração bateu baixinho. Dormi em paz.
Claro que tem o capitalismo e essa babaquice toda que vem com ele, que transforma velhos amigos em adversários na corrida maluca até o carro maior e a casa mais bonita, mas um dia notei que não era isso que o afligia. Não era isso... mas o quê? Ele falava, falava, mas nada dizia, até que ventos uivantes fustigaram o último suspiro da sua obstinação. Você entende que a bandeira branca não é uma solução?, seus olhos murmuravam sôfregos e eu simplesmente não entendia.
O mar estava bravo quando decidiu ir à praia. Tirou os chinelos, a regata branca, olhou para os lados e caminhou vagaroso até a primeira onda. Pulou mais uma, outra, perdeu-se na água gelada. Deixou lá a falta de praticidade, a falta de tempo e o medo do escuro; voltou sereno, bronzeado, e arrisco-me a dizer que sorria. Tomou-me pelo braço e caminhamos juntos até uma livraria com cheiro de sol. Quero te dar um presente, ele disse, e me entregou em pouco tempo o primeiro livro que me daria: a biografia de Jack Kerouac. Uma retrospectiva rápida passou pela minha cabeça - o manual de patifaria de Schopenhauer em cima da escrivaninha, Anos Loucos, as menções a Allen Ginsberg, O Lobo da Estepe - leia também Sidarta, você vai gostar - e eu com medo que ele lesse O Idiota. Ele sabia; viu a luz quando eu nem sabia que ela existia. Ele nunca conseguiu ser doce, jamais resignado, mas tinha ideais. Aceitei o presente como um convite a conhecer o seu mundo secreto, a mim novo e admirável. Passei a prestar mais atenção às minúcias de nossas conversas e percebi como elas eram interessantes. Iniciara um novo romance cheio de mistério e alegria, cheio de novas verdades a alimentar velhas expectativas. A admiração é a alma do negócio, lembro de ter pensado com meus botões.
Esses dias encontrei uma edição de bolso de Brave New World sobre meu criado. Retrospectiva: esse livro mudou a minha vida, ouvi ele dizer várias vezes. A nova cópia era para mim - apaixonei-me pela sábia sutileza. Ele passara por Kerouac e achava que havia saído ileso do outro lado da porta; precisava agora entendê-lo, e contava comigo para encher sua vida de outras certezas e descobertas.
Entregou-me a chave de sua essência e deitou-se ao meu lado para dormir; de repente me emocionou toda aquela confiança. Vamos mudar o mundo!, me deu vontade de gritar bem alto. Apaguei a luz e virei pro outro lado. Abre caminho que eu vou logo atrás, on the road, meu coração bateu baixinho. Dormi em paz.
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