quinta-feira, 22 de maio de 2014

Passarinha

Era uma vez um menino que de tanto olhar pra cima ficou com os olhos da cor do céu. O motivo? Ele era fascinado por passarinhos. Quando pequeno, passava as tardes de domingo sentado em frente à lagoa, desenhando cada bichinho bicudo voador em seu ângulo mais favorável. Rapidamente derramava cores sobre a imagem em HB, olhos atentos a cada nuance. De tão curioso, o menino ficou esperto - mais esperto que qualquer outro menino da sua idade. Não conversava muito; preferia observar as conversas de gente que entendia das coisas. Às vezes perguntava como, às vezes por quê; cada resposta ia enchendo seu jarro de ideias, iluminando seus doces olhos azuis. O menino era puro e alimentava-se de verdades verdadeiras. À primeira mentira, encarou a cena com um sobressalto. Havia sido informado de que o pintinho que ganhou na feira viveria muito tempo. Depois vieram os peixinhos dourados, a tartaruga e o coelho de bolso. Ah, mas isso é história pra outra história. Voltemos ao menino e seu gosto por passarinhos. Dos desenhos vieram vontades de segui-los, ver onde viviam. Mas eles tinham asas, ora essa! Certamente moravam em um lugar limpo e tranquilo - era o que eu faria se tivesse um par de asas ligeiras, ele pensou. Foi uma certa manhã com o pai ao mercado central, e sentiu uma mistura de sentimentos que plantaram uma dúvida entre as suas sobrancelhas. Havia passarinhos de todas as cores e tamanhos, de várias belezas... mas estavam dentro de gaiolas. Todos eles. Esses aqui precisam ficar presos, disse o vendedor, eles não conseguem viver sozinhos. São dependentes, domesticáveis e não têm instinto caçador. São dóceis e só anseiam por comida e água fresca. O menino olhou para os muitos passarinhos dentro de uma só gaiola no meio de tantas outras. Esses eram pequenos e coloridos, com uma máscara branca ao redor dos olhos astutos. Cantavam sem parar e logo, logo começaram a incomodar o pai. Vamos, meu filho: escolha um passarinho desses e eu o darei a você de presente. Os olhos do menino percorreram a loja com ansiedade. Em poucos minutos ele teria seu próprio passarinho! Olhou de novo para a gaiola dos bichinhos cantadores e fixou-os em uma passarinha cor de rosa. Era frágil e delicada. Não se mexia muito e não cantava. Respirava com dificuldade no fundo da gaiola lotada, encolhida, como se não pertencesse àquele ambiente. Passava o bico sobre as penas rosadas com doçura e, achou o menino, uma certa classe. Quero essa - o menino contorceu o corpo até aproximar o dedo da passarinha, que o olhava quieta. Olha, essa não vale a pena - está com a asa machucada, disse o vendedor. Mas ele queria mesmo assim. O pai tentou dissuadi-lo: olha bem, meu filho, tem tanto passarinho aqui e você vai querer logo essa que está doente e não pode voar? Qual é a graça? Vou cuidar dela, foi só o que ele disse. O pai sabia que com aquele ali não se podia discutir - se era aquilo, era aquilo mesmo. O vendedor abriu a gaiola e o menino pediu para tirar a passarinha de lá (não queria vê-la nas mãos de mais ninguém). Quando sentiu a penugem macia entre suas mãos quentes e puras, entendeu que havia ali um laço indissolúvel: estava apaixonado por ela. Com cuidado, colocou-a dentro do ninho e foi conversando com sua menina por todo o caminho de casa. Pediu ao pai que construísse um viveiro do tamanho dele para que eles pudessem brincar. Comprou a melhor ração e inventou remédios naturais para curar sua asinha machucada. Ela agradecia com cantorias diárias e pousava em seu ombro pontualmente às oito horas da manhã. Os dias corriam felizes. Com o tempo, o menino foi crescendo e fazendo outros amigos. Acumularam-se as responsabilidades na escola e ele começou a gostar das coisas que a gente compra, das coisas que os outros têm. Em uma gaveta bonita do seu pensamento morava a passarinha. Numa manhã de sol quis ver a criaturinha rosada que mesmo de longe lhe trazia as mais belas alegrias. Como ela estava magra! Um maço de penas havia-lhe abandonado o corpo indefeso. Não podia voar; sua asa descansava imóvel sobre o dorso pequenino. Alguém que não tem nada a ver com esse conto poderia inclusive dizer que a passarinha chorava. O menino a envolveu com o calor de suas mãos macias, mas a passarinha não se aquecia. Com nuvens de súplica sobre os olhos de céu, ele tentou acolhê-la em seus braços - a passarinha não se aninhava. Vou cuidar de você, porque eu te amo - e foi assim que o menino beijou a passarinha e colocou-a no colo. Buscou as folhas e flores mais bonitas do jardim e fez um remédio perfumado. Acrescentou a ele uma lágrima sincera. A partir desse dia, o menino passou a visitar a passarinha diariamente. Fazia-lhe cafuné, contava pedaços da sua vida de menino e cuidava de suas feridas. Em pouco tempo a passarinha ficou linda e forte. Suas penas rosadas ganharam brilho e as asas recuperaram o movimento. Arriscou-se a batê-las sem muito jeito, mas logo passou a fazê-lo com graça e desenvoltura. Quis chamar o menino. Cantou, cantou até que ele veio. O menino mal podia acreditar no que via: a passarinha rodopiava no ar, subia e descia num ballet charmoso e coordenado. Como você está linda! E forte! Venha, quero mostrar a todos como você é bonita e elegante! O menino abriu a porta do viveiro e convidou a passarinha a sair. Ela não correspondeu - todo o seu corpo tremia em êxtase. De repente o menino entendeu tudo. Entrou no viveiro e sentou-se próximo à passarinha, que o fitava nervosamente. Quando te vi pela primeira vez, você era uma linda passarinha assustada com a asa ferida. Te trouxe para casa e cuidei de você com todo o amor até que ficasse boa. E sabia que um dia você aprenderia a bater as asas. Sabia que você iria voar para longe. Não me arrependo de um minuto sequer em sua companhia, mas entendo que você precisa ir. Adeus, passarinha. Te amarei por toda a minha vida. A passarinha aproximou-se do menino e acarinhou seu rosto pueril. Quis mergulhar naqueles olhos azuis e perder-se neles por toda a eternidade. Olhou para cima e soube que outras cores a esperavam. Sim, ela fez com a cabeça. Levaria aquele olhar dentro do peito por cada um dos seus dias. O menino lhe estendeu a mão. Ficou na ponta dos pés, esticou o braço e a levou até a porta do céu. De olhos fechados, a passarinha voou.

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