quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Capítulo 17, parte 2: O caso da casa de Aaron

Bom, gente, cá estou - depois de vários caíres da noite - pra tentar situar vocês com relação ao meu objetivo nesse capítulo. Enrolei, embromei, ilustrei e não disse o essencial: na Inglaterra eu não era ninguém. Não sei se tiveram a oportunidade de ler um breve devaneio, em que eu dizia nunca ter sido a mais bonita da escola e coisas do gênero. Em meio a muitas bobagens, saiu uma coisa interessante - sempre houve umas cinco pessoas que me viam de uma forma diferente (cinco pessoas no mundo todo), cinco pessoas que enxergavam dentro e fora de mim motivos para me considerar um ser belo, excepcional. Além dessas raríssimas almas, havia meus amigos e todas as pessoas do mundo com as quais eu sempre me relacionei muito bem. Passei a ter uma opinião gradativamente positiva a meu respeito, e já gostava de mim o suficiente quando resolvi viajar. Saí de Belo Horizonte com um certo auto-retrato mental; reconhecia meu potencial. Chegando em Londres, essa idéia toda teve que ser jogada fora, junto com a comida que eu ganhava no japonês e não tinha lugar pra guardar, junto com o cheiro de peixe que grudava em mim e ia pelo ralo a cada dia, enfraquecido pela espuma densa do shampoo. Tomava banho e esfregava meus cabelos pensativa, todos os dias - vai ver que foi por isso que Madame Satã resolveu cortar a água eventualmente. Nunca me senti tão solitária. Nunca pensei que me sentiria isolada, sem sal, sem ter o que oferecer. Fiquei mais magra, amarela, só. Ainda bem que nesse primeiro momento não tinha tempo pra ficar triste. Num lugar com tanta coisa acontecendo simultaneamente, não tinha espaço dentro do dia pra chorar - a gente vira bicho de rua, sobrevivendo, catando os pedaços, correndo por becos escuros, achando que a sorte é a melhor amiga do homem. A alma pula pra fora do corpo, e ficamos frente a frente com nossas mazelas; nos banhamos de nossa própria essência. Dói de um jeito estranho ver tantas coisas que não vão mudar dentro da gente, o que vai mudar inevitavelmente, tantas incertezas. E ainda dizem por aí que crescer é bom. Positivo tudo bem, mas bom, vamo combinar...
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Por ter minha amiga Marina morando lá há algum tempo, conheci alguns ingleses bem legais - Sam, londrino, Patrick, de Milton Keynes, Gordon, escocês, três pessoas muito, muito especiais, que junto com Renatilda e Bruno, foram os melhores anfitriões que se pode existir. Sempre saía com o Sam, e ele sempre me levava a lugares muito interessantes e diferentes - incluindo uma preestréia de Blindness, com direito a coletiva com Fernando Meirelles e o roteirista do filme. Um dia ele me levou a um "club", uma espécie de pub privado, só para membros, bem fino. O pessoal me tratou como um animal exótico. É interessante perceber que, de forma geral, os ingleses não se misturam com os demais. A polidez deles é arrogante, quase cínica, beirando o irônico. As mulheres são ainda mais evidentes nesse sentido, talvez por inveja do nosso swing, hahaha! OK, sou uma personagem da selva amazônica... ENTÃO VAMOS NOS DIVERTIR COM ISSO! Falei muita bobagem com essa galera, às vezes tinha que segurar o riso pra não ficar tão óbvio. E me senti mais aliviada ao perceber que o inglês se acha superior a qualquer latino-americano, no matter what.
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Em alguns bares onde fui, os caras sentiam-se no direito de me tratar como um pedaço de carne, me cutucando pra falar da minha bunda num espanglês propositalmente vulgar - esses geralmente estavam em turminha, aquela turminha de motherfucking assholes doidos pra rolar uma confusão. Eu sorria... e agradecia. Dentro de mim, pedia pra que todos eles queimassem no fogo mais quente do inferno. Fora de mim, pedia outra Guiness.
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Foi num desses bares, um podrão com boa música e figuras mais exóticas que eu, em (West?)Hampstead, que conheci um sujeito singular. Tinha saído com Andrea e Olivier, e nessa época já havia me mudado para Stratford, do outro lado da cidade. Como o bar ficava perto da estação de metrô, não me preocupei. As horas foram passando, já estávamos naquele estágio "hoje eu só volto amanhã", e de repente um cara começou a conversar com a gente. Perguntou muita coisa, falou muito e pareceu ser uma pessoa interessante. Papo vai, papo vem, avisaram que o bar iria fechar. O cara - um londrino pra lá de peculiar chamado Aaron - nos convidou para tomar uma saideira na sua casa. Já eram umas três da manhã, não tinha mais metrô e eu não tinha idéia de como pegar um ônibus dali pra minha casa. Olivier foi, Andrea ficou; fomos os três. Passamos em um off-license no caminho - engraçado demais isso, os bares com licença pra vender bebida alcoólica se chamam off-license... um dia ainda vou querer entender isso! Compramos umas cervejas, ele comprou um uísque, e quando demos o dinheiro pra pagar - cada um de nós deu 20 libras pq não tínhamos trocado - ele embolsou o troco sem a menor cerimônia. Aliás, vi claramente que ele não deu um centavo e ainda levou um cigarro. Enfim... andamos até sua casa, que não era longe. A casa era linda por fora: toda branca, aquele estilo londrino antigo, com um janelão de vidro na frente, dois ou três andares. Bem, por fora ela era linda, porque por dentro era bem parecida com aquele ninho de rato da filipina - uma escada em caracol e umas vinte mini-tocas no caminho. A casa dele era basicamente um cômodo dividido em três: uma sala que acredito ser o quarto também, um banheiro bem, bem pequeno e uma cozinha bem, bem pequena. Tudo redondo, semelhante àquele prédio da Praça da Liberdade. Aaron devia ter 40 anos e uns 10000 CD's, tinha CD espalhado na casa toda. Ele disse que era músico, e que já havia tocado até com nossa musa junk no metrô. Contou que ouvia de tudo, e colocou uma trilha assaz suspeita pra alguém entendido - Black Eyed Peas. A situação estava razoavelmente agradável, até que nosso amigo deu umas revoadas tórax adentro, como diria somebody I know, e começou a falar. Descontroladamente. Sem parar. Sem respirar. Perguntou e respondeu, bebeu, fez e aconteceu. A gente escutou. Na verdade, acho que meu amigo italiano até conseguiu levar um certo papo 100:1 (100 palavras de nosso anfitrião para 1 dele) com Aaron, porque fiquei física e mentalmente exausta. Senti como se ele tivesse sugado toda a minha energia, foi incrível. Não consegui falar, meu cérebro parou de funcionar e as poucas coisas que consegui dizer foram distorcidas, deletadas ou os dois. Ele falava como um guru, sabia todas as respostas, estava acima do bem e do mal. Que sábio, hein, Andrea? Tão sábio que me encolhi no tapete e em pouco tempo estava dormindo. Minha alma voltou ao corpo no momento em que ele falava de mim. Ouvi em silêncio. Disse que eu era extremamente atraente, muito exótica - não disse que essa concepção é geral? -, mas que certamente eu só era considerada assim por não estar no meu país. Continuou, alegando que no meu país, eu deveria ser bem mais ou menos, insossa, bem meia-boca. Meu amigo mal teve tempo de discordar. Acordei meio de sobressalto e lembro-me de perguntar o que aquele poço de magnitude e sabedoria estava fazendo sozinho. Na verdade, acho que falei algo assim. O cara ficou puto! Até chorar ele chorou. Me senti na casa da Amy no meio de uma crise. Pirou, falou da sua decepção amorosa, admitiu que era uma pessoa normal - disso eu discordo em gênero, número e grau - e no final entrou numas de que era um fracassado. A essa altura, eu só queria ir embora, e por telepatia meu amigo me convenceu de que teríamos que acalmá-lo primeiro. Fiquei calada - definitivamente nada do que eu disse naquela noite ajudou - e Mr. Incerto exerceu seus dons diplomáticos por mais alguns minutos. E não é que ele é bom mesmo? Funcionou... Quando vi que podia finalmente abrir a porta, foi como se saísse de um cativeiro. Mundo, aí vou eu! Minha respiração ofegante já voltava ao normal quando, da janela, Aaron nos agradeceu pela ótima noite, e com um sorriso tranquilo e quase dócil no rosto, convidou para outro get-together num futuro próximo. Olhei pro meu amigo; esperei que ele respondesse, agradecendo a Deus por não passar de um animal exótico em terra de tia Beth. Dream on, cabron, dream on!!!!!


Um comentário:

  1. Quando você escrever seu livro eu vou ser a primeira compradora!!!

    Bjinho
    Jéssica

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