Bom dia, comunidade!
Algumas pessoas ficaram um bocado curiosas com meu breve comentário a respeito da multa que recebi no metrô – até porque é mais fácil alguém chegar da Europa contando como burlou o sistema de transporte e entrou no metrô ou no ônibus sem pagar. As pessoas que me conhecem bem, por outro lado, sabem que minha esperteza e capacidade de fazer qualquer coisa ilegal ou imoral acaba em pizza.
E é com pizza que a história começa. No primeiro mês de minha viagem, quando ainda estava em casa de Madame Satã, minhas amigas Lucy e Katerina foram embora, e no lugar delas chegaram dois simpáticos inquilinos, Andrea e Olivier. Caso vocês não tenham descoberto de cara de onde eles são por causa dos nomes, Andrea é italiano – mais que italiano, ROMANO! - e Olivier é francês. Logo logo ficamos amigos e a melhor parte da minha estada no castelo de Mun-ha (lembram do Thunder Cats?) foi a convivência com eles. Olivier fez 20 anos e pouco depois Andrea fez 30. Saíamos juntos, nos encontrávamos às vezes na escola e conversávamos muito em casa também, na medida do possível. Celebramos juntos nossas vitórias e dividimos os problemas, como fazem bons amigos.
Olivier arrumou um emprego de auxiliar de garçom logo que chegou e depois disso passamos a nos ver muito pouco – trabalhava 12 horas por dia e dormia durante o resto do dia que sobrava pra conseguir trabalhar de novo -, até que ele se cansou de Londres – por que será? - e foi embora sem se despedir, um mês depois. Nunca mais nos falamos.
Andrea queria passar no IELTS (um exame cujo certificado atesta proficiência na língua, como o TOEFL) para conseguir fazer o mestrado em Londres. Ele é cardiologista e dizia que Londres tinha a melhor universidade para o que ele gostaria de estudar. Como uma boa professora, ajudei no que pude, corrigindo suas redações e fazendo simulados de speaking com ele (só um parêntese: é muito interessante perceber como a língua mãe da pessoa influencia no aprendizado de outra: Andrea conjugava os verbos corretamente, mas nunca usava 's' no plural). Como ele teve alguns atritos com Madame Satã, acabou saindo da masmorra do terror antes de nós. Com os estudos, continuamos amigos, e fiquei muito feliz com a notícia de que ele havia passado no teste e iria iniciar o mestrado dentro de pouco tempo.
Tudo isso é pra contextualizar a situação. Agora vem o primeiro momento da trama. Andrea se mudou para uma casa perto de onde morávamos, que ficava a uns 30 minutos a pé da estação Golders Green. No dia em que resolvi ir embora da casa de Madame Satã, nos encontramos para eu contar a novidade e para nos despedirmos, já que eu iria me mudar pro outro lado da cidade. Resolvemos pegar um ônibus e lá dentro, Andrea percebeu que havia esquecido seu Oyster. Procurou, procurou e já era hora de descer. Descemos, tudo tranquilo, ninguém brigou... ótimo. Jantamos e eu disse que tinha que ir embora rápido, porque meus novos hosts iriam me buscar dentro de pouco tempo. Andrea até sugeriu andarmos, mas iria demorar muito e, além disso, eu teria que andar a outra metade do caminho sozinha. Muito descolada e espertinha, consegui convencê-lo a entrar no ônibus e fazer a mesma coisa da ida. Ele não gostou nem um pouco da idéia, mas acabou vencido pelo cansaço.
Entramos no ônibus, e ele passou a carteira no leitor como se o Oyster estivesse lá dentro. Imediatamente o motorista o chamou e disse que ele não havia pago. Aí já não dava pra tentar procurar, e o cara parou o ônibus. Meu amigo começou a ficar vermelho. Achando que sabia das coisas, dei o meu Oyster pra ele tentar passar. Que vexame! O Oyster só passa uma vez no mesmo ônibus, depois ele trava. Que bom que agora sabemos disso, né? Meio paralisado pelo constrangimento, a única reação que ele teve foi sair do ônibus. Fiquei vendo-o do lado de fora, tendo que ir embora a pé pra casa, mais que total e completamente sem-graça por MINHA culpa, e me deu um nó na garganta e um frio na barriga, mas tinha que voltar ao calabouço do ser eterno e me libertar.
Depois desse episódio, concluí que eu realmente não sirvo nem nunca servi pra esse tipo de esquema maracutaia mafiosa, e toda vez que alguém tentava me dissuadir, era categórica – não, não, não e não. Sempre deu certo ser honesta, e assim seguirei, pensei com meus botões. Mas é claro que tudo comigo tem que acontecer de um jeito estranho, claro!
Me mudei pra Stratford, que era bem longe do meu antigo trabalho, e acabei tendo que procurar outro, não é novidade. Me deram o endereço, e me disseram que o bairro era Ilford. Descobri um trem que ia de Maryland – dez minutos a pé da minha casa – a Ilford em menos de dez minutos. Vibrei com a descoberta e me preparei física e psicologicamente para meu primeiro dia de trabalho.
Cheguei a Maryland Station, que, diferentemente das outras estações, não tem catraca e nem ninguém pra conferir seu Oyster. Achando aquilo meio engraçado mas sem me preocupar muito, entrei no trem. Chegando a Ilford, tirei meu Oyster da bolsa – com crédito, regularizado, legal e moral – encostei ele no leitor e apareceu a mensagem “seek assistance”. Tentei de novo: “seek assistance”. Um pouco confusa, fui até o funcionário/fiscal/oficial e super inocentemente, como pessoa idônea que sou, expliquei o que tinha ocorrido e pedi sua ajuda. Ele passou um leitor portátil no meu cartão e disse: “Well, seu Oyster não está habilitado para a zona 4”. “Naturalmente”, respondi, “moro em Stratford, zona 3”, ao que ele reitera “Ilford é zona 4. Vou ter que te multar”. Gelei. “Olha, moço, eu nem sou daqui, nem sabia que Ilford existia na face da Terra, é meu primeiro dia de trabalho, quebra meu galho...” Parece que ele nunca tinha pensado na vida na possibilidade de quebrar o galho de alguém. Aliás, parece que ele nunca tinha nem ouvido falar de nada do tipo – percebi isso pelo jeito que ele olhou pra mim. Tirou o caderninho do bolso e me fez umas perguntas pra preencher a multa. Érika, mas como você é planta, meu Deus do céu! Eu não tinha nenhum documento de identificação, e ao invés de mentir meu nome, disse ele completo, assim como meu endereço!!! Resultado: menos vinte pilas inglesas no bolso. Até tentei um recurso, mas não deu certo. Recebi uma resposta polidamente ríspida, dizendo que é dever e responsabilidade de todo cidadão que utiliza transporte público se informar sobre origem e destino de suas jornadas.
Tentaram me multar de novo umas duas semanas depois, mas chorei tanto e tão alto que o oficial – acho que mais pelo constrangimento e susto com o escândalo do que por pena de mim – resolveu deixar passar. Pela primeira vez, esse povo que não olha pra ninguém me enxergou, enxergou minha angústia e indignação, e alguns chegaram até a fechar a cara para o oficial e murmurar algumas palavras em minha defesa. Um homem começou a gritar e xingar o funcionário, que a essa altura já devia estar pensando por que raios essa menina sem noção apareceu pra estragar meu dia. Juntou o choro de tristeza, de solidão, de frio, de falta de dinheiro, de saudade de casa, todas as lágrimas que ainda não haviam sido derramadas. Cheguei ao trabalho chorando e só parei meia hora depois.
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